O estoque de recursos aplicados em paraísos fiscais é hoje da ordem de 21 trilhões de dólares, um terço do PIB mundial. O Brasil participa generosamente com cerca de 520 bilhões de dólares, um pouco mais de um trilhão de reais, cerca de um quarto do nosso PIB. O fato de se poder esconder dinheiro ilegal, em gigantescos volumes é essencial para o vigor e a dinâmica crescente dos sistemas de corrupção no mundo empresarial e político. O artigo é de Ladislau Dowbor.
Ladislau Dowbor (*)
O resultado do conjunto destas atividades
legais, de legalidade duvidosa, ou ainda francamente ilegais, é esta
imensa confusão relativamente ao nosso sistema de alocação de recursos. E
administrar bem um país, é alocar os recursos onde terão os efeitos
mais positivos, ao melhorar a produtividade sistêmica, ao contribuir
para a qualidade de vida da população, ao assegurar um desenvolvimento
sustentável. Em particular, quando olhamos o sistema de maneira mais
ampla, constatamos que uma dimensão essencial ficou radicalmente
deformada, que é o que assegurava, através de mecanismos de mercado e de
sistemas regulatórios do Estado, uma certa proporcionalidade entre os
ganhos e a contribuição produtiva para a sociedade. Este divórcio, entre
ficar individualmente rico e ser socialmente útil, gera uma crescente
convicção de que o sistema tal como funciona está moralmente
comprometido e economicamente disfuncional. [1]
Qualquer bom profissional pode legitimamente ganhar a sua vida, por exemplo numa atividade bancária, mas quer também quer ter o sentimento de que está fazendo algo útil, e em todo caso de não estar contribuindo para fraudes e pilantragens. O homo politicus não é uma espécie a parte, e também partilha deste sentimento. Mas quando o sistema é deformado, o político honesto no dia a dia se vê reduzido a fechar os olhos sobre muitas coisas, e pior, fazer muitas coisas, não necessariamente por desonestidade, mas porque mesmo que tenha por objetivo reduzir o mar de lama qualquer um termina enlameado.
Já para ser eleito, no sistema atual, são necessários rios de dinheiro, e por tanto financiadores, e por tanto dependências além do bem público. A contradição não é um privilégio do setor público. Quem trabalha no Serasa e tem de punir uma pessoa que não conseguiu pagar 238% de juros no cartão deve pensar duas vezes.
Vamos ficar à espera da política limpa que um dia se espera existir? A questão não está em que alguns políticos desonestos estejam corrompendo a política. É que a política da maneira como está organizada torna-se uma máquina de moer talentos e reputações, de destruição de pessoas que nela entram.
O que temos pela frente, se quisermos assegurar um desenvolvimento sustentável, uma sociedade decente, a redução das desigualdades, a transparência nas contas, o uso dos recursos em função do que a sociedade realmente necessita, é muito mais amplo do que a simples criminalização de alguns políticos, ainda mais quando se transforma em perseguição ideológica mal disfarçada.
O núcleo duro de resistência é o sistema de intermediação financeira, são os grandes grupos que ao fim e ao cabo intermedeiam todas estas operações, e que se recusam resolutamente, a pretexto de proteger os clientes, de divulgar efetivamente os dados. James s. Henry, no seu estudo sobre o sistema planetário de finanças ilegais, traz uma constatação interessante: “O caráter secreto do setor privado e as políticas oficiais de governo que o protegem colocaram a maior parte das informações que precisamos fora de limites, ainda que, em princípio, estejam facilmente disponíveis. Em muitas maneiras, a questão política essencial é – quais são os custos e os benefícios de tanto segredo?” [2]
No estudo que publicamos com Ignacy Sachs e Carlos Lopes, Crises e Oportunidades em tempos de Mudança, destacamos um objetivo central: resgatar a dimensão pública do Estado [3]. Este continua a ser, na minha opinião, o desafio central. E isto passa, evidentemente, pela reforma política, em particular a reforma do financiamento das campanhas. Perdoem a repetição, mas enquanto tivermos, no congresso realmente existente – e isto se aplica evidentemente aos outros níveis de governo – uma bancada ruralista, uma bancada dos grandes bancos, das grandes empreiteiras, das grandes montadoras, da grande mídia, e pouca bancada cidadã, vai ser difícil. E tentar entender o desvio de dinheiro público sem entender como a política está articulada com quem deste desvio se beneficia, não faz sentido.
O dinheiro da corrupção gira em um circuito de interessados: os grandes beneficiários empresariais ou donos de fortunas pessoais, as instituições financeiras que fazem as transferências e também se beneficiam no processo, e os políticos que criam o seu contexto institucional. E não esqueçamos o Judiciário, que não é de maneira alguma estranho ao processo, por dar suporte legal, por conivência ou por omissão. Neste quadrilátero devemos focar as atenções, pois são segmentos articulados. É também a minha convicção de que estamos, lenta e penosamente, avançando.
Um dos efeitos indiretos da crise mundial, é que há um forte avanço recente no estudo dos grandes grupos econômicos e das grandes fortunas. Aliás, o imenso esforço de comunicação destinado a atribuir a crise financeira mundial ao comportamento irresponsável dos pobres, seja nos EUA ou na Grécia, é patético. Um estudo que sobressai, de autoria da Instituto Federal Suiço de Pesquisa Tecnológica (ETH na sigla alemã), constatou que 147 corporações, das quais 75% são grupos financeiros, controlam 40% do sistema corporativo mundial. No círculo um pouco mais aberto, 737 grupos controlam 80%. Nunca houve, na história da humanidade, nada de parecido com este nível de controle planetário através de mecanismos econômicos e financeiros. A apropriação ou no mínimo fragilização das instituições políticas, frente a estes gigantes, torna-se hoje fato comprovado. [4]
Corroborando esta pesquisa, e focando inclusive em grande parte os mesmos bancos – Goldman & Sachs, Barclays, HSBC, UBS etc. - temos hoje outra pesquisa de grande porte, liderada por James Henry, ex-economista chefe da McKinsey, e realizada no quadro da Tax Justice Network. Em termos resumidos, o estoque de recursos aplicados em paraísos fiscais é hoje da ordem de 21 trilhões de dólares, um terço do PIB mundial. O Brasil participa generosamente com cerca de 520 bilhões de dólares, um pouco mais de um trilhão de reais, cerca de um quarto do nosso PIB. São dados obtidos através de cruzamento de informações dos grandes bancos, do BIS de Basiléia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, de Bancos Centrais e de várias instituições de pesquisa ou de controle. Nada de invenções: trata-se no essencial de juntar os dados de forma organizada, com metodologia clara e transparente, e indicações da relativa segurança ou insegurança dos dados a cada passo. Esta peça informativa fazia muita falta, e passamos agora a ver o que acontece com tanto dinheiro ilegal que resulta das várias formas de corrupção. [5]
Vamos entrar um pouco no detalhe do estudo, pois o fato de se poder esconder dinheiro ilegal, em gigantescos volumes, a partir de qualquer parte do mundo, é essencial para o vigor e a dinâmica crescente dos sistemas de corrupção, tanto no mundo empresarial como no mundo político, um sustentando o outro.
Primeiro, as fontes: “O presente estudo emprega quatro enfoques básicos de estimativas: (1) um modelo “fontes e usos” para os fluxos de capital não registrados país por país; (2) um modelo de “riqueza acumulada offshore”; (3) um modelo de portfólio de investimentos offshore; (4) estimativas diretas de ativos offshore nos 50 principais bancos privados globais. Para compilar estas estimativas, o estudo utilizou os dados disponíveis mais recentes do Banco Mundial, do FMI, das Nações Unidas, de bancos centrais, e as contas nacionais para modelar explicitamente os fluxos de capital paa cada membro de um subgrupo de 139 países “fonte” que publicam este tipo de dados”.
Segundo, o enfoque do estudo se concentrou menos nos fluxos e mais nos estoques acumulados de capital, o que permite identificar não só os fluxos como os ganhos de aplicação dos capitais clandestinos. “Ao deslocar a atenção de fluxos para os estoques acumulados de riqueza no exterior, este estudo chama a atenção para o fato que a retenção de ganhos de investimentos no exterior pode facilmente tornar-se tão significativa que os fluxos iniciais são a partir de certo momento sobrepujados pela “fuga escondida”, com o estoque escondido de riqueza privada não registrada gerando suficiente renda não registrada para manter o seu crescimento muito tempo depois que as saídas iniciais pararam”. Ganhos, evidentemente, que escapam dos impostos, serviço prestado pelos bancos. O estudo estima a evasão fiscal resultante em 189 bilhões de dólares ao ano.
Terceiro, há um complexo sistema de arranjos jurídicos e mudanças de localização legal que torna difícil o seguimento. “O termo ‘offshore’ não se refere tanto à localização física de ativos ou passivos privados, mas locais frequentemente muito temporários de redes de entidades e arranjos legais ou quase-legais, nominais, hiper-portáteis, multi-jurisdicionais, sempre no interesse dos que os administram, supostamente no interesse dos proprietários que se beneficiam, e frequentemente com indiferença ou desafio aberto relativamente aos interesses e leis de numerosos estados-nação.” Para isto o sistema se apoia nas amplas redes dos grandes bancos.
O estudo menciona os grupos dominantes neste processo, que administram cerca de tres quartos destes capitais: UBS, Crédit Suisse, Citigroup/SSB/Morgan Stanley, Deutsche Bank, BankAmerica/Merrill Lynch, JPMorganChase, BNP Paribas, HSBC, Pictet & Cie, Goldman Sachs, ABN Amro, Barclays, Crédit Agricole, Julius Baer, Societe Générale, e Lombard Odier.
Quarto, os capitais não estão propriamente alocados nos paraísos fiscais, ainda que tenham ali a sua residência formal. Não se trata de cofres em paraísos tropicais, mas de contas administradas pelos grandes bancos. “Resulta que este setor offshore coberto de segredos – que se especializa essencialmente em evasão fiscal e lavagem dos resultados de uma miríade de atividades duvidosas – não é um arquipélago de paraísos exóticos e não relacionados, mas uma indústria global muito lucrativa, a “indústria da pirataria bancária global”. Esta indústria foi basicamente desenhada e tem sido operada há décadas, não por obscuros bancos sem nome localizados em ilhas paradisíacas, mas pelos maiores bancos privados, bem como firmas jurídicas e de contabilidade de proa. Todas estas instituições estão baseadas, não em ilhas, mas nas maiores capitais do primeiro mundo como Nova Iorque, Londres, Genebra, Frankfurt e Cingapura”.
Finalmente, um ato essencial: trata-se de recursos pertencentes a uma minoria ínfima de muito-ricos. “Como a parte esmagadora de ativos privados offshore não registrados que identificamos pertence a uma minúscula elite, o impacto sobre a desigualdade é surpreendente. Temos estimado, por exemplo, que menos de 100 mil pessoas, 0,001% da população mundial, controlam atualmente mais de 30% da riqueza financeira mundial. (...) Do ponto de vista do ‘mercado pirata privado’, o que é talvez o mais interessante nesta paisagem de desigualdade global, é que estamos revelando a emergência recente de uma verdadeira elite transnacional privada, uma fração relativamente ínfima da população mundial que compartilha necessidades e interesses surpreendentemente semelhantes em termos de segredo financeiro, serviços bancários, impostos e regulação.”
O conceito de desigualdade está sendo revisto. A partir de certo nível, o que é eticamente contestável torna-se economicamente pernicioso porque desarticula a própria política econômica. O tão conservador The Economist decidiu recentemente rever a sua defesa dos privilégios, e descreve, em amplo relatório especial, os impactos reais: “As desigualdades crescentes em muitos países estão começando a preocupar até os plutocratas. Uma pesquisa realizada para a reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos apontou a desigualdade como o problema mais premente da próxima década (junto com os desequilíbrios fiscais). Em todos os setores da sociedade, há um acordo crescente de que o mundo está se tornando mais desigual, e que as disparidades atuais e as suas prováveis trajetórias são perigosas...A história instável da América Latina, durante longo tempo o continente com a maior desigualdade de renda, sugere que países administrados por ricas elites entrincheiradas não funcionam muito bem.” [6]
Não se trata de invejar os ricos, e sim de reduzir a máquina de desorganização econômica que geraram, com segredos e ilegalidades a cada passo.
A nós interessa particularmente o mecanismo financeiro, naturalmente, porque se trata da base de sustento – a extraterritorialidade jurídica, por assim dizer, e garantia de impunidade – de todo o sistema de corrupção.
Mas sobretudo nos interessa o impacto político. “Isto também significa que como grupo esta elite transnacional tem, em princípio, um forte interesse em garantir impostos mais fracos sobre a renda e a riqueza, em fragilizar a capacidade de regulação do governo, em assegurar mercados mais ‘abertos’, e em fragilizar as restrições sobre a influência política e gastos de campanhas além das fronteiras – com um enorme ‘exército do paraíso’ com banqueiros piratas, empresas de advocacia, empresas de contabilidade, lobistas e empresas de relações públicas aos seus serviços.”
Assim, o Brasil não está isolado, neste sistema planetário, nem é particularmente corrupto. Mas o conjunto criado é sim profundamente corrompido. Os dados para o Brasil, em termos de capitais offshore, são de toda forma impressionantes, ocupamos o quarto lugar no mundo. Em termos de valores, o Brasil tem em paraísos fiscais 362 bilhões de dólares.
Calculando um rendimento modesto de 3% ao ano, haveria hoje mais 247 bilhões de rendimentos acumulados, o que leva a um total de 520 bilhões de dólares. Vemos também como outros países latino-americanos enfrentam o mesmo mal, inclusive proporcionalmente mais grave. Evasão fiscal é crime. E a origem deste dinheiro escapa a qualquer escrutínio.
Enquanto os grandes bancos estiverem protegidos pelo segredo, não poderemos no país focar o que realmente interessa. Segundo a expressão tradicional, estaremos enxugando o chão, mas a torneira seguirá aberta.
Sem dúvida, temos imensas tarefas pela frente. Os paraísos fiscais, que colocam ao abrigo das investigações o grande dinheiro, foi objeto de declarações fortes do G20, e de nenhuma ação. Os grandes bancos, que acumulam fraudes e ilegalidades impressionantes, recebem dinheiro público para sanarem os buracos que criaram. Não ver a amplitude do mecanismo não constitui apenas miopia, nos leva a criminalizações fáceis, mas pouco significativas em termos sistêmicos. E sobretudo impede de ir ao que realmente interessa.
O que têm em comum os corruptores, nos diversos elos que representam no sistema, é que detestam a transparência. Vimos, nesta pequena série de artigos sobre os descaminhos do dinheiro, os 2 bilhões de reais que nos custou a campanha eleitoral de 2012, a transferência de mais de 100 bilhões por ano do governo para os grandes bancos através da taxa Selic, os mais de 50 bilhões de reais que nos custa o cartel dos grandes bancos através de agiotagem, os cerca de 20 bilhões de reais que nos custam as emendas parlamentares individuais e as “rachadinhas”, o escoamento dos recursos gerados para paraísos fiscais, cerca de um trilhão de reais no caso do Brasil. Isto em custos diretos. Muito mais nos custa, evidentemente, a deformação das próprias decisões econômicas ao se priorizar as infraestruturas de transporte individual sobre o coletivo, o rodoviário sobre o ferroviário e o aquaviário, a saúde curativa sobre a preventiva e assim por diante. Estes mecanismos formam parte do sistema que mantém a imensa desigualdade no país, o elevado ‘custo Brasil’, e o desvio de recursos que poderiam ser produtivamente investidos.
O Brasil, lentamente, está avançando. A taxa Selic está baixando fortemente, fechando uma das principais torneiras de vazamento de recursos públicas e economizando bilhões a cada queda de 1% da taxa Selic. Através da redução gradual dos juros ao tomador final os bancos oficiais estão lentamente reintroduzindo mecanismos de mercado no sistema comercial de intermediação financeira. A recente Lei da Transparência, que obriga os governos a disponibilizar os dados, foi um imenso avanço cujos efeitos se farão rapidamente sentir, ainda que falte aqui avançar na transparência do sistema financeiro. As medidas que finalmente criaram uma capacidade administrativa de enfrentar a cartelização (o “super-CADE”) abrem um início de perspectivas para a reintrodução da concorrência na economia [7]. A lei da ficha limpa é um progresso muito significativo. Não vê os avanços quem não quer. Mas o caminho pela frente é longo.
(*) Ladislau Dowbor, economista, é professor da PUC de São Paulo, e consultor de várias agências das NNUU. http://dowbor.org
NOTAS
[1] Na realidade, é frequentemente mais remunerado quem menos merece. Uma excelente explicitação dos mecanismos pode ser encontrada no ensaio Apropriação Indébita, de Gal Alperovitz e Lew Daly, editado pelo Senac, 2010.
[2] James Henry - The Price of off-shore revisited.
[3] Crises e Oportunidades em tempos de mudança – 2010, 21p.
[4] Para uma análise sumária dos resultados da pesquisa do ETH, ver http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/
[5] “A significant fraction of global private financial wealth -- by our estimates, at least $21 to $32 trillion as of 2010 -- has been invested virtually tax-free through the world’s still expanding black hole of more than 80 “offshore” secrecy jurisdictions. We believe this range to be conservative, for reasons discussed below. On this scale, this “offshore economy” is large enough to have a major impact on estimates of inequality of wealth and income; on estimates of national income and debt ratios; and – most importantly – to have very significant negative impacts on the domestic tax bases of key “source” countries (that is, countries that have seen net unrecorded private capital outflows over time)” p. 3 – The Price of off-shore revisited - Os dados sobre o Brasil estão no Appendix III, (1) p. 23.
[6] The Economist, 13-19 outubro 2012, Special Report on the World Economy, p. 6.
[7] Sobre esta iniciativa do governo, ver o artigo no Economist, 5 de agosto de 2012.
Carta Maior
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