A dissolução dos mitos americanos
por Mauro Santayana
Os
mitos, como os deuses, são produtos do poder. É o controle da
informação, mediante a difusão da cultura opressora, que amedronta os
povos indefesos e agiganta os agressores e saqueadores. Depois da
Antiguidade, os norte-americanos foram os mais competentes em criar a
mitologia da superioridade intelectual e moral de seus políticos, de
seus pensadores e de seus exércitos.
Como todos os povos, ele
teve e tem grandes pensadores e cientistas e é claro que houve (hoje
provavelmente não haja mais) soldados que se destacaram por sua bravura
nas lutas pela independência, na Guerra da Secessão e nas duas guerras
mundiais de que participaram. Na Primeira delas, durante a batalha de
Argonne, na frente francesa, o sargento Alvin York avançou com seu grupo
sobre um ninho de metralhadoras, matou 28 soldados alemães, prendeu 132
e se apropriou de 32 metralhadoras. Era um homem do campo, que mal
sabia ler, e que se tornou o mais condecorado soldado dos Estados Unidos
durante o conflito.
Outro homem do campo – e o oposto do
protótipo do super-herói americano, posto que de estatura baixa e corpo
mirrado – foi Audie Murphy, o mais condecorado militar dos Estados
Unidos na Segunda Guerra Mundial. Esse conseguiu retirar algum proveito
do mito, tornando-se ator de cinema de talento reduzido, mas de boa
bilheteria, por seu heroísmo real. Os dois, como sabemos, foram heróis
em guerras que podemos considerar justas, ainda que servissem também aos
poderosos de seu país.
Fora das guerras citadas – a da
Independência, a da Secessão e as duas mundiais – não houve heróis,
ainda que tenha havido sacrifícios imensos de seus homens, nos combates
travados pelos norte-americanos. Não os houve na guerra de anexação
contra o México, nem contra a Espanha – e menos ainda, em decorrência
desse conflito, na repressão à luta das Filipinas pela independência. E
ninguém encontrará heroísmo ianque na Coréia, no Vietnã, no Iraque e no
Afeganistão. E nem se fale da Somália, de onde os norte-americanos
saíram apressadamente, da mesma maneira que deixaram Saigon. No caso do
Iraque, o mais liberal dos regimes da região, a mentira foi usada com
desfaçatez: Saddam não possuía qualquer arma de destruição em massa, e
era inimigo declarado de Al Qaeda – a mesma Al Qaeda que participa da
contra-revolução síria.
Dessas incursões criminosas falam mais as
imagens de Abu Ghraib e de Guantánamo com a tortura contra prisioneiros
indefesos, e os relatos brutais da chacina de My Lai, no Vietnã.
Ontem,
no Cemitério de Arlington, na cerimônia anual pelos que morreram em
combate, Obama apelou para o sentimento de patriotismo dos
norte-americanos, lembrando que os meios tecnológicos da guerra não
bastam para substituir o “valor” dos soldados. Ele ponderou que, pelo
fato de que, hoje, os soldados são voluntários, e não conscritos, como
no passado, o povo não se sente tão empenhado em solidarizar-se com os
seus exércitos. Na realidade, o Pentágono “terceiriza” a guerra e usa
mais mercenários do que patriotas nos combates.
Na semana
passada, ele dissera, em outra cerimônia militar, que os Estados Unidos
devem terminar com a guerra contra o terrorismo tal como ela se
desenhara no governo Bush. Ontem, no entanto, insistiu que “a América
ainda está em guerra”.
É possível que os mitos em torno da
superioridade norte-americana, alimentados pela imprensa, pela
literatura e, sobre todos os outros meios, pelo cinema e pela
televisão, estejam sendo dissolvidos pela realidade. Há coisas novas,
que nos trazem certa esperança. Entre elas, o primeiro compromisso entre
o governo colombiano e as Farc, a propósito da política agrária a ser
adotada no país. E, por mais a França e a Inglaterra advoguem uma
intervenção militar na Síria, não parece que Washington e Moscou, cada
capital com as próprias razões, aceitem essa nova aventura.
Obama
parece sincero em seu apelo ao Congresso para que autorize fechar
Guantánamo e em sua disposição de deixar o Afeganistão no ano que vem.
Mas isso não o isenta do que seu país fez na Líbia e em sua cumplicidade
com Israel contra o povo palestino.
As virtudes do povo
americano – e são muitas – só serão conhecidas quando eles esquecerem os
mitos e assumirem sua plena humanidade.
Mauro Santayana
Mauro Santayana
JB Online - Conversa Afiada
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