Em que pesem todos os prováveis efeitos negativos da atual onda de volatilidade a varrer os mercados financeiros internacionais, começa a se formar, no Brasil, um consenso sobre a possibilidade de aproveitar o momento para trazer os juros domésticos a níveis mais próximos do restante do mundo, aí incluídos os países desenvolvidos e emergentes. Após cinco elevações da taxa básica, a Selic, até os atuais 12,5% ao ano, o Banco Central sinaliza ter dado fim ao aperto monetário. Além do simples corte do índice, economistas sugerem que o governo aproveite o momento e prepare o terreno para uma queda mais pronunciada e, é claro, duradoura do custo do dinheiro.
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Um primeiro passo seria desatrelar a dívida pública federal da Selic, que hoje garante aos credores do Brasil uma segurança sem paralelo em outros cantos do mundo. Quase 35% das obrigações do governo são reajustadas automaticamente pela taxa básica de juros, o que também influencia diretamente a remuneração oferecida pelos demais títulos. Em entrevista recente a CartaCapital, o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto sugeriu que a presidenta Dilma Rousseff se aproveite do fato de que mais de 80% da parcela dos títulos públicos atrelados à Selic vence até o fim de seu mandato e “mude o mecanismo de financiamento” do governo.
Em maio, a equipe econômica chegou a estudar a substituição da Selic por outro indexador, chamado de Libor brasileira, um índice criado pela BM&FBovespa com inspiração na taxa Libor britânica, e que seria calculado a cada três e seis meses com base na curva futura de Depósitos Interbancários (DI). Na prática, seria um meio de romper com o uso dos Certificados de DI (CDI), uma referência de curtíssimo prazo usada desde os tempos de hiperinflação.
O plano parecia não ter avançado, até que, no dia 12 deste mês, o presidente do BC, Alexandre Tombini, apresentou ao mercado a Taxa Preferencial Brasileira. O índice será baseado nas condições oferecidas pelas instituições financeiras aos seus melhores clientes, a exemplo da taxa prime calculada por outros bancos centrais. A aposta é que, ao tornar-se referência no mercado de crédito, a “prime brasileira” estimulará o barateamento das diversas modalidades de empréstimos, a começar pela dívida contraída pelo setor público.
Enquanto não torna oficial a estratégia de substituição dos títulos indexados à Selic (as chamadas Letras Financeiras do Tesouro, ou LFTs), a Secretaria do Tesouro Nacional, sob o comando de Arno Augustin, tem optado por limitar a emissão de papéis. Daí o anúncio, na terça-feira 23, da redução de cerca de 4% no tamanho da dívida pública federal, hoje em 1,73 trilhão de reais. O Tesouro valeu-se do chamado colchão de liquidez, que hoje permitiria ao Brasil cumprir com as obrigações externas por até seis meses sem efetuar rolagens de títulos (troca de papéis vencidos por outros novos).
Diante das incertezas no mercado internacional, no entanto, os investidores fugiram dos títulos pré-fixados, cuja participação na composição da dívida caiu de 38,13% para 34,49%, e reforçaram a aposta nas LFTs, que cresceram de 30,91% para 32,61% do total. O Plano Anual de Financiamento (PAF) de 2011 prevê que os títulos indexados pela Selic terminarão o ano com um peso entre os limites de 28% a 33% do endividamento público.
No acumulado até julho, a dívida pública federal cresceu apenas 2,4%. Em seis anos, porém, o montante elevou-se em quase 50%. A dívida somava 1,16 trilhão de reais em 2005, com 43,9% do valor diretamente atrelado à taxa Selic. Nesse período, o governo conseguiu, por outro lado, alongar o prazo médio dos vencimentos, de dois anos e oito meses para três anos e nove meses em julho.
Ao estudar as séries históricas de rendimento dos diferentes títulos públicos, o especialista em contas públicas Amir Khair, ex-secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo, percebeu a convergência de todos em torno dos indexados à taxa básica de juros. “Quando a Selic sobe, o investidor passa a exigir que todas as aplicações ofereçam o mesmo ganho. Por isso é preciso calcular o impacto da taxa sobre a dívida não só com base na parcela diretamente atrelada a ela, mas sobre o valor total. Da mesma forma, uma redução consistente dos juros pode puxar para baixo o custo de toda a dívida.”
Khair defende uma queda rápida da taxa de juros, com a ampliação do uso de medidas macroprudenciais para conter a expansão do crédito, caso a inflação dê novos sinais de recrudescimento. “A Selic só tem se mostrado eficiente para favorecer a entrada de dólares no País.” Não por acaso, as LFTs são os títulos públicos preferidos pelos investidores estrangeiros, e compõem 62,8% da carteira dos credores não residentes no Brasil.
O professor de Economia do Ibmec José Ricardo da Costa e Silva vê a desindexação dos títulos públicos como pré-condição para a queda consistente dos juros, mas ressalva que a alteração do perfil da dívida pode ter um custo elevado, de acordo com o momento da substituição dos papéis. “Se for realizar a troca por títulos de rendimento préfixado, o governo precisa observar as tendências da economia. Se achamos que as condições vão ser melhores lá na frente, não precisamos nos comprometer a pagar uma taxa que pode se mostrar elevada num futuro próximo.”
Diferentemente das empresas, o governo não tem a opção de buscar recursos mais baratos ao contrair empréstimos diretamente no exterior, em moeda estrangeira. O problema é que, ao ingressar no País, os dólares precisam ser trocados por reais, o que pressiona a taxa de juros. A única maneira de driblar esse efeito é emitir títulos para retirar do mercado o excedente de dinheiro em circulação, ao elevado custo dos juros domésticos. A operação, chamada de esterilização, praticamente anula o ganho obtido no exterior. Em outras palavras, o País é refém dos humores do mercado doméstico.
“O Tesouro pode avaliar o custo da dívida conforme a evolução dos efeitos da crise financeira internacional”, diz Costa e Silva. “Como a previsão é que a inflação ceda e os juros caiam no médio prazo, os títulos indexados não são um problema imediato, embora seja positivo ficar atento aos vencimentos para mudar o perfil da dívida.”
Enquanto realiza, paulatinamente, o desatrelamento da dívida pública à Selic, o economista sugere que o governo trabalhe na remoção de outro obstáculo à queda dos juros, também citado por Delfim Netto: as regras da poupança. A barreira, neste caso, é bem mais visível. Quando a taxa começa a se aproximar dos 6% de remuneração fixa garantida pela poupança (que ainda é somada à Taxa Referencial), as operações monetárias tendem a uma desarticulação, com um grande afluxo de recursos para a caderneta.
Em julho de 2009, quando o Brasil se recuperava dos efeitos da turbulência financeira internacional que se seguiu à quebra do Lehman Brothers, a taxa básica de juros chegou ao mais baixo patamar desde a criação do Plano Real, 8,75%. Foi o bastante para que o Tesouro acendesse a luz amarela. Identificava-se, então, o risco concreto de uma migração em massa dos recursos de fundos de investimentos, grandes financiadores da dívida pública, para os ganhos garantidos da poupança.
O governo chegou a anunciar mudanças na poupança, que praticamente se limitavam à cobrança de Imposto de Renda nas aplicações superiores a 50 mil reais. Embora a tendência fosse apenas adiar o problema, na medida em que a Selic continuasse em queda, a medida não chegou a sair do papel. O aquecimento da economia prenunciava um novo ciclo de aperto monetário e os juros voltaram a subir em março de 2010. “Se ainda resta algo da cultura inflacionária na sociedade é a ansiedade para comprar e a expectativa de rendimentos elevados para poupar”, diz Silva.
O que defendem os economistas é que o governo aproveite o momento atual, quando as taxas de juros parecem ter atingido um pico, para pavimentar e, se possível, alongar o caminho de descida. Nesse sentido, desindexar as aplicações financeiras seria um bom começo para uma tarefa ainda mais complexa, embora não menos necessária: ensinar aos brasileiros que vale a pena guardar dinheiro para consumir no futuro, mas o retorno via capitalização, em uma economia desenvolvida, ocorre apenas no longo prazo. •
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