BRENO ALTMAN
Apesar das importantes conquistas dos últimos dez anos e das pesquisas eleitorais favoráveis, a onda de protestos abala o principal partido da esquerda brasileira e aproxima-se do governo federal
Um fantasma ronda o mundo petista. O da perplexidade. Apesar das
importantes conquistas dos últimos dez anos e das pesquisas eleitorais
favoráveis, a onda de protestos abala o principal partido da esquerda
brasileira e aproxima-se do governo federal. Com o prefeito de São Paulo
na berlinda e multidões de jovens nas ruas, tudo o que era sólido
parece se desmanchar no ar.
Muitos se perguntam o porquê de tanta ira depois de uma década na
qual a pobreza diminuiu, a renda foi melhor distribuída e chegou-se
praticamente ao pleno emprego. É verdade que as manifestações estão
gravitando, por ora, ao redor de uma agenda local. A revolta juvenil
exige principalmente menores tarifas de transporte e direito de
manifestação, contrapondo-se à violência das polícias estaduais. Somente
um autista político, no entanto, deixaria de perceber que uma nova
situação se instaurou no país.
Alguns petistas, estarrecidos, não hesitaram em vislumbrar,
balançando o berço dos protestos, a mão peluda da direita, arrastando
junto os infantes da ultraesquerda. Mas a narrativa conspiratória não
resistiu aos fatos. Os centros de poder do conservadorismo –
especialmente os veículos tradicionais de comunicação e o governo
paulista – desencadearam reação feroz contra a mobilização, que desaguou
na repressão implacável da última quinta-feira.
A truculência policial serviu de condimento para a escalada de
protestos e sua nacionalização. A defesa de um direito democrático
fundamental, diante da qual vacilaram, nos primeiros momentos, tanto o
ministro da Justiça quanto o prefeito paulistano, foi assumida com
energia e radicalidade pela juventude das grandes metrópoles. Partidos e
governos da direita foram os responsáveis pela escalada repressiva, mas
tiveram a seu favor a tibieza de setores da esquerda surpreendidos com
fenômenos alheios a suas planilhas.
Parte do estado-maior reacionário refez suas contas, emparelhando
discurso para disputar a rebelião e voltá-la contra o governo federal,
provisoriamente arquivando a opção da violência.
Até o momento, colheram
um rotundo fracasso. Não apenas as manifestações e lideranças
resistiram a abraçar suas bandeiras como foram frequentes cartazes e
palavras de ordem contra o governador Alckmin e a própria imprensa,
especialmente a Rede Globo.
Mesmo os alvos escolhidos pelos segmentos mais radicalizados – o
Palácio dos Bandeirantes em São Paulo, a Assembléia Legislativa no Rio, o
Congresso Nacional em Brasília – demonstram que os jovens não estão nas
ruas a serviço da restauração antipetista. Tampouco parecem se sentir
representados e incluídos, porém, no processo impulsionado a partir da
vitória de Lula em 2002.
A imensa maioria dos manifestantes tinha abaixo de 25 anos, formada
por filhos das camadas médias e também dos bairros periféricos. A julgar
por suas palavras de ordem, cartazes e bandeiras, não estão contra as
reformas empreendidas desde 2003. Mas querem mais, melhor e rápido.
Ninguém levantou a voz para criticar o bolsa-família, o crédito
consignado ou o Prouni. Nenhuma faixa foi erguida para defender
privatizações e outras políticas favoráveis aos interesses de mercado.
Poucos eram os manifestantes que carregavam cartolinas contra o
"mensalão" e a corrupção. A luta é pela ampliação de direitos políticos e
sociais, demanda encarnada pela exigência de barateamento do transporte
público.
Mas cansaram de esperar que estes avanços sejam patrocinados por
governos e partidos, mesmo os de esquerda. Não parecem satisfeitos com a
timidez e a lentidão para realizar novas reformas, mais audazes, que
acelerem a melhoria de suas condições de vida. E resolveram, como ocorre
em determinados momentos históricos, tomar a construção do futuro em
suas próprias mãos.
A rejeição à presença de bandeiras partidárias pode ser analisada
pela ótica corriqueira, como rechaço a instrumentos de organização
coletiva ou despolitização. Mas também caberia ser compreendida, ao lado
de outros ingredientes, como simbolismo de quem, avesso às correntes
conservadoras ou ao aparelhismo de pequenos grupos, não se sente
cativado ou vocalizado no projeto liderado pelo PT.
Provavelmente não se trata apenas de uma questão econômico-social,
mas igualmente política. Uma parte da sociedade, mesmo com inclinação
progressista, dá sinais de fadiga com a estratégia de mudanças sem
rupturas. Há crescente mal-estar com uma equação de governabilidade que
preserva as velhas instituições, depende de alianças com fatias da
própria oligarquia para formar maioria parlamentar, abdica da disputa de
valores e renuncia à mobilização social como método de pressão.
Antes esse cansaço se restringia a pequenos círculos de militantes
mais enfezados. Afinal, muito pode ser feito mesmo sem reformas
estruturais, a partir da reorientação do orçamento nacional, integrando
dezenas de milhões à cidadania e ampliando conquistas sociais. O fato é
que esse cenário pode ter atingido seu teto. E as ruas começam a gritar.
O movimento não é contra o PT, mas coloca a estratégia do partido e
do governo em xeque. Há uma exigência de protagonismo popular e juvenil,
explicitada nos últimos dias. A direção partidária e o Palácio do
Planalto estão dispostos a considerar essa mobilização um fator de poder
e refazer suas conexões com estes movimentos, impulsionando sua
ascensão para construir forças rumo a uma nova geração de reformas?
Esta e outras perguntas estão embutidas no alarme que a revolta do
vinagre fez soar. Diante do clamor, o petismo pode retificar sua
estratégia e repactuar com a rebelião das ruas para aprofundar e
acelerar reformas de base. Ou pagar o preço próprio das situações onde a
esquerda e as ruas se divorciam.
Brasil 247
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