É frenética a
competição pela atribuição de sentido a manifestações deste junho que já
não possuem sentido unívoco algum. Da tentativa de apropriação pela
mídia conservadora, que obteve sucesso em pautar as demandas e insinuar o
roteiro das caminhadas, às solenes reflexões sobre o aprofundamento da
participação popular e o esgotamento da democracia representativa, nada
faltou para obscurecer o já espinhoso desafio de compreender o sucesso e
eventuais explosões de coletividades. Até mesmo a subserviente
beatificação da juventude pelos velhotes assustados com o estigma de
superados, caso não adotem o corte de cabelo à moicano, compareceu. Mas
em seu tempo, a bem da verdade, nenhum deles foi preservado de cometer
sandices pela juventude de que desfrutavam.
É razoável atribuir
ao aumento nas tarifas dos transportes coletivos a força causal que pôs
em movimento as primeiras manifestações. A repressão bruta, na cidade de
São Paulo, à passeata de quinta-feira, 13 de junho, forneceu uma razão
suficiente para a velocidade inédita com que manifestações semelhantes
se disseminassem horizontalmente em várias capitais. Ao saírem às ruas,
na segunda-feira, dia 17, o que as marchas conquistaram em adesão
extensa perderam em unidade reivindicatória. Do mesmo modo, a
causalidade que mobilizava o povaréu tornou-se múltipla e não
automaticamente coerente. A lista de reivindicações avolumou-se,
fragmentando os grupos de interesse e anunciando o óbvio: é impossível
atender completa e instantaneamente a todas as deficiências do país.
Insistir nisso é torcer por um impasse sem negociação crível. O clima
ficou grávido de sinais disparatados, com a ausência de coordenação de
legitimidade reconhecida. Paraíso para todos os oportunismos,
charlatanices, além dos equívocos de boa fé.
Nada a ver com os
“cara pintadas” do “Fora Collor”. À época, todos foram às ruas com o
mesmo e único propósito: o impedimento do presidente . Princípio causal
único do movimento, indicava o que era apropriado e o que não era
apropriado fazer. Não havia sentido, para o objetivo comum, promover
depredações, alienar aliados ou desrespeitar adversários. Muito menos
aproveitar a audiência para fazer propaganda de algum interesse
faccioso. Agora, a que vem a PEC 37, por exemplo, nas manifestações
sobre aumento de passagens de coletivos? – Trata-se de um aprofundamento
do processo decisório, dirão alguns de meus colegas. Sim, e por conta
disso lá virá a mídia conservadora sugerir que as manifestações não
parem, apenas substituam as bandeiras, quem sabe sabotar as próximas
licitações ferroviárias, rodoviárias e aeroviárias fundamentais para o
país? Ou, ainda melhor, alterar o sistema de partilha do pré-sal e
revogar a exigência de participação da Petrobrás? As suaves
apresentadoras do sistema golpista de comunicação passaram a perguntar
ao repórter que cobria manifestação na cidade de Niterói se os protestos
não iriam se dirigir à ponte Rio-Niterói, justo depois dos prefeitos do
Rio e de Niterói revogarem o aumento nos transportes. Em qualquer
democracia que se preze essa incitação à desordem não ficaria sem
conseqüência.
Ao contrário de ser uma beleza de movimento sem
líderes, o espontaneísmo infantil se revela um desastre na confissão de
alguns de que não conseguem impedir a violência de sub-grupos. Nem por
isso deixam de ser responsáveis por ela na medida em que continuarem
recusando a adesão cooperativa das instituições com alvará de
estabelecimento reconhecido, instituições capazes de assegurar a virtude
pacífica das manifestações. É politicamente primitivo, nada
vanguardista, impedir a associação de movimentos organizados e,
inclusive, de partidos políticos, desde que submetidos ao objetivo
central da manifestação. Em movimentos de boa fé democrática há a hora
de desconfiar e a hora de convergir. Ou estão sub-repticiamente
provocando o descrédito de legítimas instituições democráticas a
pretexto de alargar a esfera de liberdade do espaço público?
Não
são só os de boa fé e bem intencionados que se manifestam e pautam o
“espontâneo” alheio. Reconheço o odor fétido dessa teoria de longe.
O Cafezinho - Miguel do Rosário
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