Em artigo exclusivo para o 247, o jornalista Breno
Altman disseca o pensamento de duas caricaturas da direita brasileira:
Olavo de Carvalho e Reinaldo Azevedo. "Este núcleo liberal-fascista
ganhou o reforço do fundamentalismo religioso, adensando a retórica
pró-mercado e de criminalização da esquerda com o preconceito racial e
social, o ódio contra a liberdade sexual e o ataque à laicidade do
Estado", afirma. "A falsa retórica da liberdade não escamoteia sua
natureza autoritária e golpista"
Não bastassem as investidas do
astrólogo Olavo de Carvalho contra a esquerda, por ocasião do Foro de
São Paulo, a ele se juntou mais um rufião, o blogueiro Reinaldo Azevedo.
Ambos têm, em comum, remoto passado de militância progressista e adesão
às ideias obscurantistas. São a dupla dinâmica do neoconservadorismo
brasileiro, em uma versão ainda mais enferma que a norte-americana.
Houve um tempo no qual os
vira-casacas tinham higidez intelectual e sólida cultura. Carlos Lacerda
e Paulo Francis, por exemplo, trocaram de lado sem capitularem ao
charlatanismo. Mesmo quando ataram suas vidas ao pensamento de direita,
seus cérebros não foram ofuscados pelo histrionismo tão próprio a bufões
como o Batman e o Robin do reacionarismo pátrio.
Liberal e fascista
Apesar de caricaturais, estes dois
personagens colocaram em foco tema de interesse para uma discussão
política relevante, ao reagirem com histeria e falso espanto ao termo
liberal-fascismo. “Não se pode ser, a um só tempo, liberal e fascista”,
vaticinou o escriba da ex-revista Veja.
Supondo que a contestação seja
de boa fé, a ignorância histórica não pode servir, porém, de álibi para
elidir as características típicas de certo conservadorismo do
pós-guerra.
O que foram as ditaduras militares
da Argentina e do Chile, para citarmos dois casos notórios, que não uma
fusão entre liberalismo econômico e fascismo político? Nas duas
situações, a agenda da hegemonia do mercado foi imposta pelo terror de
Estado. A repressão em grande escala, sufocando o movimento operário e
os partidos progressistas, emergiu como instrumento para aplicar
programa de privatização, desregulamentação e eliminação de direitos que
destravassem a acumulação de capital.
Integrante de uma das mais poderosas
famílias de latifundiários, José Alfredo Martínez de Hoz foi ministro
da Economia no regime dos generais argentinos. Com o apoio do Fundo
Monetário Internacional, adotou medidas prescritas pela corrente
monetarista, célula-mater da alternativa liberal. Congelou salários,
eliminou controle de preços, desvalorizou a moeda, proibiu sindicatos,
cortou gastos públicos (salvo os militares), liberou a taxa de juros,
desregulamentou bancos, colocou ativos do Estado à venda.
A euforia burguesa dos primeiros
tempos, antes que o país entrasse em bancarrota, levou o período entre
1976 e 1980 a ser conhecido como plata dulce. Parcelas expressivas do
empresariado e das camadas médias endinheiradas viviam à tripa-forra
enquanto o sangue jorrava nas masmorras. Era o idílio do liberalismo sem
limites e sem freios, que apenas o fascismo poderia propiciar.
Conselheiro de Pinochet
As evidências deste casamento são
ainda mais cristalinas durante o processo chileno, no qual o liberal
norte-americano Milton Friedman, principal apóstolo da Escola de
Chicago, serviu de grão-conselheiro para o ditador Augusto Pinochet. A
mão de ferro dos quartéis funcionava como pé de cabra para as forças do
livre-mercado, derrubando o governo constitucional do presidente
Salvador Allende e limando resistência à apoteose da liberdade de
capitais.
Não faltaram, na Argentina e no
Chile, movimentos de massa, respaldados pelas frações mais ricas da
população, que ajudaram a erodir administrações eleitas nas urnas e
criar o clima adequado ao gorilismo. Não é preciso dizer que até “Patria
y Libertad”, braço civil do fascismo chileno, pregava a derrubada de
Allende em nome da democracia, da liberdade de imprensa e da luta contra
o “totalitarismo comunista”. A propósito, como também ocorreu no
Brasil, quando foi ceifado o governo João Goulart.
A grupos desse quilate também se
juntaram vozes liberais mais moderadas, especialmente representadas por
meios de comunicação (como o argentino “Clarín” e o chileno “El
Mercurio”) e partidos tradicionais das classes abonadas. O fascismo se
transformou, com facilidade, na janela de oportunidade para o
liberalismo se impor como modelo de economia e sociedade.
Uma olhada a fatos mais recentes
permite reconhecer o mesmo fenômeno no fracassado golpe de Estado contra
Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002. Uma ampla frente conservadora foi
chefiada por grupos fascistas, com agenda liberal, em sublevação que
levou à ruptura da ordem constitucional e pretendia enterrar, pelas
armas, o projeto de caráter socialista.
Fascismo à brasileira
Esta não é, contudo, apenas uma
questão histórica. Diz respeito à atualidade da vida política
brasileira. Podem ser identificadas, no lamaçal de opiniões e condutas
que lhe são próprias, três tendências fundamentais no campo de direita.
A primeira delas, alcunhada de
social-liberalismo pelo sociólogo José Guilherme Merquior, foi
hegemônica durante os anos noventa e no governo de Fernando Henrique
Cardoso. Associava ao programa privatista um conjunto de medidas
compensatórias que, timidamente, buscavam minimizar as consequências
brutais de sua política econômica sobre as camadas populares.
A segunda delas, o conservadorismo
tradicional, foi coadjuvante da primeira durante a gestão tucana.
Representante das oligarquias regionais e dos setores menos dinâmicos do
capitalismo, sempre ofereceu resistência à modernização do Estado, à
democratização das instituições e à ampliação dos direitos
econômico-sociais. Seus porta-vozes, então partidariamente concentrados
no antigo PFL, além de presentes em fatias do PMDB e agremiações
menores, costumeiramente são defensores de uma visão mais clássica do
liberalismo e a combinam com forte viés repressivo contra as lutas
sociais. São oriundos das frações dos grandes proprietários de terras,
que tiveram imenso poder na primeira metade do século XX.
A terceira destas tendências é o
liberal-fascismo. Excluída do bloco de poder no ciclo anterior às
administrações petistas, ganhou paulatina relevância nos últimos dez
anos. Apesar de seu caráter extraparlamentar, seus expoentes têm
relevante espaço em veículos de imprensa e passaram a influenciar
gradativamente o discurso do conjunto da oposição de direita ao PT.
A existência de um governo de
esquerda, afinal, por si só já é ingrediente favorável à polarização,
provocando relativa dispersão entre os grupos mais centristas. Mas o
fator preponderante talvez seja a potente implantação de programas
distributivistas, associada a medidas econômicas que incorporaram
dezenas de milhões ao mercado interno e aceleraram o crescimento da
economia. O aumento de renda e emprego acabou por retirar do
social-liberalismo tanto audiência para sua narrativa híbrida quanto
pujança para comandar as fileiras antipetistas.
O esfarelamento dos sociais-liberais
libertou os conservadores de sua órbita e abriu flanco para abordagem
cada vez mais reacionária, capitaneada desde fora do sistema partidário
pelas trincheiras do liberal-fascismo na mídia e na sociedade. A
campanha de José Serra, no segundo turno de 2010, é ilustrativa dessa
guinada, ao incorporar as bandeiras mais retrógadas do portfólio
direitista.
Santos do pau oco
Este núcleo liberal-fascista ganhou o
reforço do fundamentalismo religioso, adensando a retórica pró-mercado e
de criminalização da esquerda com o preconceito racial e social, o ódio
contra a liberdade sexual e o ataque à laicidade do Estado. Seu
desenvolvimento foi facilitado pela debilidade do governo e da esquerda
em travar o embate de valores contra a direita, no bojo de uma
estratégia de mudanças paulatinas sem confronto e ruptura.
O componente estrutural dessa
fraqueza são os monopólios de comunicação, que não reproduzem a
pluralidade real do país e garantem plataformas para a incidência dessas
linhagens reacionárias que vai muito além de sua representatividade
eleitoral ou capilaridade social.
O objetivo tático imediato do
liberal-fascismo, por razão de força e aliança, não parecer ser a queda
do governo progressista, mas submetê-lo a uma guerra de desgaste e
mobilização, unificando particularmente as camadas médias das cidades
mais importantes e forjando um bloco com o conservadorismo, que acabe
por arrastar os cacos do social-liberalismo.
Um símbolo relevante dessa
confluência é a decisão de fazer ressurgir das cinzas o ex-jornalista
Augusto Nunes, outro trânsfuga a serviço do liberal-fascismo, e nomeá-lo
âncora do “Roda Viva”, um programa abrigado pela TV Cultura, de
propriedade do governo paulista. Revela-se, assim, nítida aproximação
entre o PSDB de Geraldo Alckmin, inspirado pelo radicalismo católico e
vértice da articulação conservadora, e os agrupamentos mais extremos do
reacionarismo midiático.
Os liberais-fascistas podem até
flertar com alguma candidatura bonapartista, como seria a de Joaquim
Barbosa. Sua intenção fundamental, no entanto, é pautar a agenda da
direita, qualquer que seja o nome capaz de concorrer, em 2014, contra
Dilma Rousseff. Não constituem um projeto de poder a curto ou médio
prazo, mas querem balizar e influenciar a alternativa contra o PT.
Um dos motivos para a esquerda
reanimar a batalha de ideias e valores contra o liberal-fascismo,
portanto, é porque essa corrente expressa, de forma mais clara e
vanguardista, o discurso de identidade e crítica da oposição. A verdade é
que este pensamento precisa ser derrotado para que certos grilhões do
atraso sejam rompidos.
O liberal-fascismo, além do mais,
coloca permanentemente em risco a democracia. Seus áulicos são os
galinhas-verdes de nosso tempo. Precisam ser combatidos como o foram
seus antepassados integralistas. Nas urnas e nas ruas, mas especialmente
no terreno ideológico. A falsa retórica da liberdade não escamoteia sua
natureza autoritária e golpista, própria de quem espelha a face mais
feroz e antipopular da oligarquia. Mesmo que os rostos refletidos no
espelho sejam de personagens bizarros e medíocres.
Breno Altman é jornalista, diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel.
Brasil 247
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