O mensalão de 54: atentado com tiro no peito do pé
por Mauro Santayana
Em 24 de agosto de 1954, os homens de
minha geração chegavam à maioridade. Naquele dia, pela manhã, cheguei
ao Rio, enviado pelo Diário de Minas, de Belo Horizonte, a fim de cobrir
o velório de Vargas e a reação do povo carioca ao suicídio do
Presidente. A Presidente Dilma Rousseff era uma menina de seis anos. Não
poderia saber o que significava aquele gesto de um homem que mal
passara dos 70, e ocupara o centro da vida brasileira naqueles últimos
24 anos.
As jornadas anteriores haviam sido enganosas, o que
costuma ocorrer na História, desde o episódio famoso da frustrada queda
de Richelieu. Os meios de comunicação haviam ampliado o suposto atentado
contra Carlos Lacerda – obscuro até hoje – e atribuído a
responsabilidade ao Presidente, tentando fazer crer que o Palácio do
Governo se transformara em valhacouto de ladrões e assassinos. Houve
quase unanimidade contra Getúlio. Quando passei pela Praça 7, em Belo
Horizonte, a caminho do aeroporto da Pampulha, entre manifestantes de
esquerda, um jovem sindicalista, meu amigo, pedia aos gritos, pelo
megafone, a prisão do Presidente. Desci do táxi e lhe dei a notícia, com
os avisos de meu pressentimento: dissolvesse o grupo, antes que os
trabalhadores, ao saber da morte do Presidente, reagissem na defesa do
líder desaparecido.
Durante a viagem ao Rio, que durava hora e
meia, organizei minhas idéias. Entendi, em um instante, que a ação
coordenada contra Vargas nada tinha a ver com o assassinato de um
oficial da Força Aérea, transformado em guarda-costas do jornalista
Carlos Lacerda – isso, sim, ato irregular e punível pelos regulamentos
militares. Lacerda, ferido no peito do pé, não permitiu que o revólver
que portava fosse periciado pela polícia. Açulada e acuada pela grande
imprensa, a polícia nunca investigou o que realmente houve na Rua
Tonelero.
Vargas fora acossado pelos interesses dos banqueiros e
grandes empresários associados ao capital norte-americano. Ao ouvir,
pelo rádio, a leitura de sua carta, não tive qualquer dúvida: Getúlio se
matara como ato de denúncia, não de renúncia. Morrera em defesa do
desenvolvimento soberano de nosso povo.
Sei que não basta a
vontade política do governante para administrar bem o Estado. Mas uma
coisa parece óbvia a quem estuda as relações históricas entre o Estado e
a Nação: o Estado existe para buscar a justiça, defender os mais
frágeis, uma vez que a igualdade entre todos. Por isso, algumas medidas
anunciadas pelo governo inquietam grande parcela dos brasileiros bem
informados. É sempre suspeito que os grandes empresários aplaudam, com
alegria, uma decisão do governo. Posso imaginar a euforia dos lobos
junto a uma ninhada de cordeiros. Quando os ricos aplaudem, os pobres
devem acautelar-se.
O regime de concessões vem desde o Império.
As vantagens oferecidas aos investidores ingleses, no alvorecer da
Independência, levaram à Revolução de 1842, chefiada pelo mineiro
Teófilo Ottoni e pelos paulistas Feijó e Rafael Tobias de Aguiar, e
conhecida como a Revolução do Serro, em Minas, e de Sorocaba, em São
Paulo. O Manifesto Revolucionário, divulgado em São João del Rei por
Teófilo Ottoni, e assinado por José Feliciano Pinto Coelho, presidente
da província rebelde, é claro em seu nacionalismo, ao denunciar que os
estrangeiros ditavam o que devíamos fazer “em nossa própria casa”.
A
presidente deve conhecer bem, como estudiosa do tema, o que foi a
política econômica de Campos Salles e seu ministro Joaquim Murtinho, em
resposta à especulação financeira alucinante do encilhamento. O
excessivo liberalismo do governo de Prudente de Moraes e de seu ministro
Ruy Barbosa, afundou o Brasil, fazendo crescer absurdamente o serviço
da dívida – já histórica –, obrigando Campos Salles (que morreria anos
depois, em relativa pobreza) a negociar, com notório constrangimento, o
funding loan com a praça de Londres. O resultado foi desastroso para o
Brasil. Os bancos brasileiros quebraram, um banco inglês em sua sucursal
brasileira superou o Banco do Brasil em recursos e operações e, ainda
em 1999, a Light iniciava, no Brasil, o sistema de concessões como o
conhecemos. O Brasil perdeu, nos dez anos que se seguiram, o caminho de
desenvolvimento que vinha seguindo desde 1870.
Durante mais de 50
anos, a energia elétrica, a produção e distribuição de gás e o sistema
de comunicações telefônicas no eixo Rio-SP-BH foram controlados pelos
estrangeiros. Ao mesmo tempo, os combustíveis se encontravam sob o
controle da Standard Oil. A iluminação dos pobres se fazia com o
Kerosene Jacaré, vendido em litros, nas pequenas mercearias dos
subúrbios, cujos moradores não podiam pagar pela energia elétrica,
escassa e muito cara. O caso das concessões da Light é exemplar: antes
do fim do prazo, a empresa, sucateada, foi reestatizada, para, em
seguida, ser recuperada pelo governo e “privatizada”. Como se sabe foi
adquirida pela EDF, uma estatal francesa, durante o governo de Fernando
Henrique. Novamente sucateada, foi preciso que uma estatal brasileira, a
Cemig, associada a capitais privados nacionais, a assumisse, para as
inversões necessárias à sua recuperação.
Vargas não tinha como se
livrar, da noite para a manhã, dessa desgraça, mas iniciou o processo
político necessário, ainda no Estado Novo, para conferir ao Estado o
controle dos setores estratégicos da economia. Só conseguiu, antes de
ser deposto em 1945, criar a CSN e a Vale do Rio Doce. Eleito, retomou o
projeto, em 1951 e o confronto com Washington se tornou aberto. O
capital americano desembarcara com apetite durante o governo Dutra, na
primeira onda de desnacionalização da jovem indústria brasileira.
Getúlio, na defesa de nossos interesses, decidiu limitar a remessa de
lucros. Embora os banqueiros e as corporações estrangeiras soubessem
muito bem como esquivar-se da lei, a decisão foi um pretexto para a
articulação do golpe que o levaria à morte.
O Estado pode, e
deve, manter sob seu controle estrito os setores estratégicos da
economia, como os dos transportes, da energia, do sistema financeiro.
Concessões, principalmente abertas aos estrangeiros, em quase todas as
situações, são um risco dispensável. O Brasil dispõe hoje de técnicos e
de recursos, tanto é assim que o BNDES vai financiar, a juros de mãe, os
empreendimentos previstos. Se há escassez de engenheiros
especializados, podemos contratá-los no Exterior, assim como podemos
comprar os processos tecnológicos fora do país. Uma solução seria a das
empresas de economia mista, com controle e maioria de capitais do Estado
e a minoria dos investidores nacionais, mediante ações preferenciais.
Por
mais caro nos custem, é melhor do que entregar as obras e a operação
dos aeroportos, ferrovias e rodovias ao controle estrangeiro. O que nos
tem faltado é cuidado e zelo na escolha dos administradores de algumas
empresas públicas. Não há diferença entre uma empresa pública e uma
empresa privada, a não ser a competência e a lisura de seus
administradores. Entre os quadros de que dispomos, há engenheiros
militares competentes e nacionalistas, como os que colaboraram com o
projeto nacional de Vargas e com as realizações de Juscelino, na chefia e
composição dos grupos de trabalho executivo, como o GEIA e o Geipot.
E
por falar nisso, são numerosas e fortes as reações à anunciada nomeação
do Sr. Bernardo Figueiredo, para dirigir a nova estatal ferroviária.
Seu nome já foi vetado pelo Senado para a direção da Agência Nacional
dos Transportes Terrestres. E o bom senso é contrário à construção do
Trem Bala, que custará bilhões de reais. O senso comum recomenda usar
esses recursos na melhoria das linhas existentes e na abertura de novos
trechos convencionais. Não podemos entrar em uma corrida desse tipo com
os países mais ricos. Eles se podem dar esse luxo, porque já dispõem de
armas atômicas e nós não temos como garantir nem mesmo as nossas
fronteiras históricas.
Conversa Afiada
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
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