Por P Pereira
Do Sul 21
Mundo cão
Por Otávio Augusto Winck Nunes
Não se trata de um fenômeno recente. Mas, é curiosa a
extensão que tomou, ao longo do tempo, a relação entre os humanos e os
outros animais, o de estimação. Acabo de assistir ao show de Eduardo
Dussek (sim, agora com dois ‘esses’ no nome), no Rio de Janeiro. Uma de
suas músicas de maior sucesso nos anos oitenta foi “Rock da cachorra”.
Com sua irreverência ímpar, cantava que deveríamos trocar um cachorro
por uma criança pobre.
Em que pese o tipo de “bichano” (pode ser gato, peixe
ou passarinho), o humor do músico antecipava um já crescente segmento
de mercado – na verdade o que poderia ser relaçãovirou consumo! Mas,
mais do isso, criticava uma disposição dos humanos pela adoção de
animais em detrimento da adoção do bicho homem, do semelhante.
Esse é o que parece ser o enigma que envolve o mundo
pet: transformar um animal no substituto de um humano. A crítica de
Dussek, mesmo que exagerada, procede. Tem a sagacidade de escrachar o
que é uma das faces mais paradoxais da questão: é possível estipular a
equivalência entre um animal de estimação e um humano? Em que pese a
minha simpatia por animais, que é grande, fico com a impressão que
exageramos.
Outro dado carioca: passeando com sua dona, um
simpático vira-lata vestido de surfista, com sua prancha, em direção à
praia, digamos, embaixo de seu braço (tenho foto para comprovar). Sim,
sua vestimenta, que incluía uma viseira protegendo seus olhos do sol
forte, tinha um compartimento para carregar sua prancha de surf,
compatível com seu tamanho. Mas, não é um fenômeno exclusivo dos
cariocas, em breve, podemos ver (se já não aconteceu) um pet pilchado,
guaiaca incluso.
O fenômeno no Brasil repete, em alguma medida, o que
acontece em outros lugares. Um mercado, ou uma relação de amor, ávido
por oferecer produtos para os pets, que nada demandam, mas que seus
donos rapidamente tornam imprescindíveis aos animais. A lógica é essa.
Por vezes existe a tentativa de inverter a lógica que
sustenta o argumento, mas trata-se de uma forçagem. Não há uma
desmedida nesse âmbito?
Sei que é um assunto polêmico, mas não acho que
colocar a questão seja necessariamente motivo para provocar briga com os
defensores dos animais. Meu intuito, por sinal, é esse proteger os
animais.
Já se fez várias leituras desse fenômeno. Solidão dos
humanos vem em primeiro lugar. Seguido pela rivalidade estipulada pela
raça da moda. Em terceiro, para que o filho, uma criança, tenha uma
experiência de ter um animal desde cedo e se responsabilize por ele
(esse argumento dura uma fração de segundos, todo mundo sabe quem
cuidará do animal de estimação). Em quarto, o narcisismo, e por aí vai.
Aliás, nenhuma delas exclui a outra.
Mesmo que os argumentos pró animais sejam válidos, e
que não possamos estipular, felizmente, uma única interpretação, temos
que considerar ao menos o seguinte: não há equivalência entre um humano
(não importa a idade, nem classe social) e um animal. Normalmente,
atribuímos e enfatizamos nos animais não humanos, características que
gostamos de ver ocultas não só nos outros humanos, mas em nós mesmos.
Além disso, a verticalidade da relação dos humanos
com os animais é imbatível. Ou o leitor acha que o cachorro pediu a
prancha de surf a sua dona? Então, só emprestamos aos animais nossos
nobres sentimentos por levarmos em conta dois fatores: eles não os têm,
logo seria bom que tivessem, por exemplo, vontade de ser surfista; e
outro fator atrelado ao primeiro: a objetalização dos animais a serviço
do narcisismo. Sim, precisamos transformar os bichos em humanos por
levarmos nossa espécie muito a sério.
Não é exagerado, como já existe, ter uma casa com
quarto decorado específico para os pets? Aliás, eles são merecedores do
nosso profundo respeito, tanto que deveríamos poupá-los de nossas
neuroses.
Humanizar os animais é tentar fazê-los
responsabilizar por algo que nem nós humanos gostaríamos de nos ocupar.
Sim, ao reproduzir toda a sorte de cuidados, preocupações e sentimentos
não estamos só tentando domesticar um animal, é nossa própria falta de
civilidade e agressividade que está sendo colocada à prova.
Mais do que tudo, o que é pior para os animais não
humanos é herdar nossa neurose, não nossa tentativa de humanizá-los,
pois, para isso eles não tem defesa alguma.
Animais fazem muito bem aos humanos, ou contrário nem
sempre é verdadeiro. Discordo da equivalência unívoca proposta por
Dussek (cachorro igual a criança pobre ou rica, tanto faz) mas
incentivar o medo de vivermos entre humanos não me parece ser a melhor
alternativa que temos à disposição. Por mais fiel que um animal de
estimação possa ser ao seu dono, e que seja mais fácil um humano trair a
confiança de outro humano, que um animal, e não o contrário.
1 Psicanalista,
membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); mestre em
Psicologia do Desenvolvimento/UFRGS; mestre em Psicanálise e
Psicopatologia, Universidade Paris 7.
Blog do Luis Nassif
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