Por Mauricio Dias e Leandro Fortes, enviado a Belo Horizonte
Na quinta-feira 2, quando se iniciar o julgamento do
chamado mensalão no Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes estará com
sua toga ao lado dos dez colegas da corte. Seu protagonismo nesse
episódio está mais do que evidenciado. Há cerca de um mês, o ministro
tornou-se o assunto principal no País ao denunciar uma suposta pressão
do ex-presidente Lula para que o STF aliviasse os petistas envolvidos no
escândalo, “bandidos”, segundo a definição de Mendes.
À época, imaginava-se que a maior preocupação do magistrado fosse a
natureza de suas relações com o bicheiro Carlinhos Cachoeira e o
ex-senador Demóstenes Torres. Mas isso é o de menos. Gilmar Mendes tem
muito mais a explicar sobre as menções a seu nome no valerioduto tucano,
o esquema montado pelo publicitário Marcos Valério de Souza para
abastecer a campanha à reeleição de Eduardo Azeredo ao governo de Minas
Gerais em 1998 e que mais tarde serviria de modelo ao PT.
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O nome do ministro aparece em uma extensa lista de
beneficiários do caixa 2 da campanha. Há um abismo entre a contabilidade
oficial e a paralela. Azeredo, à época, declarou ter gasto 8 milhões de
reais. Na documentação assinada e registrada em cartório, o valor chega
a 104,3 milhões de reais. Mendes teria recebido 185 mil.
A lista está metodicamente organizada. Sob o enunciado “relatório de
movimentação financeira da campanha da reeleição do governador Eduardo
Brandão de Azeredo”, são perfilados em ordem alfabética doadores da
campanha e os beneficiários dos recursos. São quase 30 páginas,
escoradas em cerca de 20 comprovantes de depósitos que confirmam boa
parte da movimentação financeira. Os repasses foram feitos por meio do
Banco de Crédito Nacional (BCN) e do Banco Rural, cujos dirigentes são
réus do “mensalão” petista.
Esse pacote de documentos foi entregue na quinta-feira 26 à delegada
Josélia Braga da Cruz na Superintendência da Polícia Federal em Minas
Gerais. Além de Mendes, entre doadores e receptores, aparecem algumas
das maiores empresas do País, governadores, deputados, senadores,
prefeitos e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A papelada
desnuda o submundo das campanhas eleitorais inalcançado pela Justiça. Há
registros de doações de prefeituras, estatais e outros órgãos públicos
impedidos por lei de irrigar disputas políticas.
Os pagamentos foram feitos pela SMP&B Comunicação, empresa do
ecumênico Marcos Valério de Souza. Todas as páginas são rubricadas pelo
publicitário mineiro, com assinatura reconhecida em cartório no final do
documento datado de 28 de março de 1999. Há ainda uma declaração
assinada por Souza de 12 de setembro de 2007 e apresentada à Justiça de
Minas Gerais. Souza informa um repasse de 4,5 milhões de reais a
Azeredo.
Intitulado “Declaração para fins de prova judicial
ou extrajudicial”, o documento de apresentação assinado pelo
publicitário afirma que o depósito milionário a favor de Azeredo foi
feito “com autorização” dos coordenadores financeiros da campanha tucana
Cláudio Roberto Mourão e Walfrido dos Mares Guia. As origens da
quantia, diz o texto, são o Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge),
Banco Rural, Comig (atual Codemig, estatal de infraestrutura mineira),
Copasa (companhia estadual de saneamento), Loteria Mineira (estatal de
loterias) e as construtoras Andrade Gutierrez e ARG, “conforme
declaração de reembolso assinada pelo declarante”.
Segundo a papelada, Souza afirma ter elaborado a lista em comum
acordo com Mourão, principal tesoureiro da campanha de Azeredo, no mesmo
dia 28 de março de 1999 que consta ao lado de sua assinatura. Chamada
formalmente de “relatório de movimentação financeira”, a lista teria
sido montada “sob a administração financeira” das agências SMP&B
Comunicação e DNA Propaganda. No fim, o publicitário faz questão de
isentar o lobista Nilton Monteiro, apontado como autor da famosa lista
de Furnas, de ter participado da confecção do documento.
Monteiro provavelmente tem alguma ligação com a história. Há muitas
semelhanças entre os dois documentos. A lista de Furnas, cuja
autenticidade foi comprovada pela perícia técnica da Polícia Federal,
igualmente trazia uma lista de nomes de políticos, a maioria do PSDB e
do ex-PFL (atual DEM), todos beneficiados por recursos de caixa 2. Além
de Monteiro, assinava o documento Dimas Toledo, ex-diretor de Furnas,
que até hoje nega ter rubricado aqueles papéis. A diferença agora são os
comprovantes de depósitos, as autenticações em cartório e uma riqueza
de detalhes raramente vista em documentos desse tipo.
Quem entregou a papelada à Polícia Federal foi Dino Miraglia Filho,
advogado criminalista de Belo Horizonte. Miraglia chegou à lista por
conta de sua atuação na defesa da família da modelo Cristiana Aparecida
Ferreira, assassinada por envenenamento seguido de estrangulamento em um
flat da capital mineira, em agosto de 2000. Filha de um funcionário
aposentado da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), Cristiana,
de 24 anos, tinha ligações com diversos políticos mineiros. No inquérito
policial sobre o crime, é descrita como garota de programa, mas os
investigadores desconfiam que sua principal ocupação fosse entregar
malas de dinheiro do valerioduto mineiro. Na lista assinada por Souza,
ela aparece como beneficiária de 1,8 milhão de reais, com a seguinte
ressalva: “Via Carlos Eloy/Mares Guia”.
Carlos Eloy, ex-presidente da Cemig entre 1991 e 1998, foi um dos
coordenadores da campanha de reeleição de Azeredo. É um dos principais
envolvidos no esquema e, segundo Miraglia, pode estar por trás do
assassinato de Cristiana Ferreira. “Não tenho dúvida de que foi queima
de arquivo”, acusa o advogado.
Mares Guia foi ministro do Turismo no primeiro governo Lula e
coordenou a fracassada campanha à reeleição de Azeredo. Apontado como
ex-amante da modelo, o ex-ministro chegou a ser arrolado como testemunha
no julgamento de Cristiana, em 2009, mas não compareceu por estar em
viagem aos Estados Unidos. Na ocasião, o detetive particular Reinaldo
Pacífico de Oliveira Filho foi condenado a 14 anos de prisão pelo
assassinato. Desde então, está foragido. “Não há nenhum esforço da
polícia mineira em prendê-lo, claro”, diz Miraglia.
Na lista, Eloy aparece quase sempre como
intermediário dos pagamentos do caixa 2 operado pelo publicitário, mas
não deixa de se beneficiar diretamente. Há quatro depósitos registrados
em seu nome no valor total de 377,6 mil reais. Os intermediários dos
pagamentos a Eloy, segundo a documentação, foram Mourão, Mares Guia,
Azeredo, o senador Clésio Andrade (PMDB-MG) e uma prima do tesoureiro,
Vera Mourão, funcionária do escritório de arrecadação do ex-governador
tucano.
Mares Guia, além de aparecer como intermediário de quase todos os
pagamentos, consta como beneficiário de 2,6 milhões de reais. Sua
mulher, Sheila dos Mares Guia (116 mil reais, “via Eduardo Azeredo/Mares
Guia), e seu filho, Leonardo dos Mares Guia (158 mil reais, “via
Eduardo Azeredo/Mares Guia”), são citados. Na mesma linha segue Clésio
Andrade. Presidente da Confederação Nacional dos Transportes (CNT),
Andrade foi vice-governador do estado no primeiro governo do atual
senador Aécio Neves e aparece como intermediário de centenas de
pagamentos.
O documento tem potencial para tornar a situação de Azeredo, hoje
deputado federal, ainda mais crítica. O processo do valerioduto mineiro
está no Supremo sob a guarda do relator Joaquim Barbosa. Ao contrário de
seu similar petista, foi desmembrado para que somente os réus com
direito a foro privilegiado, Azeredo e Andrade, sejam julgados na mais
alta corte. O destino dos demais envolvidos está nas mãos da 9ª Vara
Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Na denúncia apresentada ao STF em novembro de 2007
pelo ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, o
ex-governador Azeredo é acusado de ser “um dos principais mentores e
principal beneficiário do esquema implantado”. O deputado tucano foi
denunciado por peculato (apropriação de dinheiro por funcionário
público) e lavagem de dinheiro. “Embora negue conhecer os fatos, as
provas colhidas desmentem sua versão defensiva”, aponta Souza na
denúncia. “Há uma série de telefonemas entre Eduardo Azeredo e Marcos
Valério, demonstrando intenso relacionamento do primeiro (Azeredo) com os integrantes do núcleo que operou o esquema criminoso de repasse de recursos para a sua campanha.”
O ex-procurador-geral chamou o esquema mineiro de “laboratório do
mensalão nacional”. Outro citado pelo Ministério Público Federal é
Danilo de Castro, secretário estadual no governo Aécio Neves e no
mandato do sucessor, o também tucano Antonio Anastasia. Castro teria
recebido, via Clésio Andrade e Azeredo, 350 mil reais. As origens dos
recursos teriam sido a Cemig, a Comig e a Copasa.
Somam-se 35 registros de valores arrecadados a partir de órgãos
públicos no valor de 14,4 milhões de reais. Apenas do Banco do Estado de
Minas Gerais (Bemge), que Azeredo privatizaria ainda em 1998, saíram
1,2 milhão de reais para a campanha, segundo a lista do publicitário. A
Petrobras teria repassado 1,3 milhão de reais, dos quais 157 mil reais
foram desviados do patrocínio do Enduro Internacional da Independência,
um evento de motociclismo.
A lista encadeia ainda uma arrecadação total de 530 mil reais feita
por prefeituras mineiras comandadas por tucanos e aliados (Governador
Valadares, Juiz de Fora, Mariana, Ouro Preto e Ponte Nova). De Juiz de
Fora vieram 100 mil reais repassados pelo prefeito Custódio de Mattos,
que teve um retorno interessante do investimento. Como beneficiário do
esquema, Mattos recebeu 120 mil reais, segundo a lista, embora seu nome
apareça em um dos depósitos do Banco Rural com um valor de 20 mil reais.
A discrepância, nesse e outros casos, acreditam os investigadores, pode
se dever a saques feitos na boca do caixa.
Quem desponta na lista de doadores, sem nenhuma
surpresa, é o banqueiro Daniel Dantas. Foram 4,2 milhões de reais por
meio da Cemig. Desses, 750 mil reais chegaram “via Daniel Dantas/Elena
Landau/Mares Guia” numa rubrica “AES/Cemig”. O dono do Opportunity
aparece ainda no registro “Southern/Cemig” (590 mil reais) ao lado de
Elena Landau e Mares Guia, e seu banco é citado num repasse de 1,4
milhão de reais via Telemig Celular.
Elena Landau foi uma das principais operadoras das privatizações no
governo Fernando Henrique Cardoso. Casada com o ex-presidente do Banco
Central Pérsio Arida, ex-sócio do Opportunity, foi diretora de
desestatização do BNDES. E uma das representantes do grupo
Southern Electric Participações do Brasil, consórcio formado pela
Southern, AES e Opportunity. O banco de Dantas adquiriu, com
financiamento do BNDES, 33% das ações da Cemig em 1997.
O documento entregue à PF lista um total de 13 governadores e
ex-governadores beneficiários do esquema, dos quais sete são do PSDB,
quatro do ex-PFL e dois do PMDB. Os tucanos são Albano Franco (SE, 60,8
mil reais), Almir Gabriel (PA, 78 mil reais), Dante de Oliveira (MT, já
falecido, 70 mil reais), Eduardo Azeredo (MG, 4,7 milhões de reais),
José Ignácio Ferreira (ES, 150 mil reais), Marconi Perillo (GO, 150 mil
reais) e Tasso Jereissati (CE, 30 mil reais). Do ex-PFL são listados
César Borges (BA, 100 mil reais), Jaime Lerner (PR, 100 mil reais),
Jorge Bornhausen (SC, 190 mil reais) e Paulo Souto (BA, 75 mil reais).
Do PMDB constam Hélio Garcia (MG, 500 mil reais) e Joaquim Roriz (DF,
100 mil reais).
Na distribuição política, os intermediários, segundo a lista, são
quase sempre Azeredo ou Pimenta da Veiga, ex-ministro das Comunicações e
um dos coordenadores das campanhas presidenciais de FHC em 1994 e 1998.
Pimenta da Veiga aparece no documento como destinatário de 2,8 milhões
de reais para a “campanha de Fernando Henrique Cardoso”. O ex-presidente
está na lista em outra altura, ao lado do filho, Paulo Henrique
Cardoso. À dupla, diz a lista do valerioduto, teria sido repassado o
valor de 573 mil reais, “via Eduardo Azeredo e Pimenta da Veiga”.
Eduardo Jorge, ex-ministro e grão-tucano, teria recebido 1,5 milhão de
reais.
Parlamentares não faltam. A começar pelo deputado Paulo Abi-Ackel, a
quem foram destinados 100 mil reais, segundo registro do documento. Seu
pai, o ex-deputado e ex-ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, aparece
como destinatário de 280 mil reais. Entre os locais estão os deputados
estaduais Alencar Magalhães da Silveira Junior (PDT), com um registro de
pagamento de 10 mil reais, e Ermínio Batista Filho (PSDB), com 25 mil
reais. Melhor sorte parece ter tido o ex-deputado tucano Elmo Braz
Soares, ex-presidente do Tribunal de Contas de Minas Gerais. Soares,
também registrado nos depósitos da SMP&B, teve direito a uma bolada
de 145 mil reais.
As benesses do valerioduto mineiro alcançaram
lideranças nacionais do tucanato. Um deles foi o ex-senador Arthur
Virgílio Filho, do Amazonas. Pela lista de Marcos Valério, Virgílio
recebeu 90,5 mil reais do esquema. Outro tucano, o ex-senador Antero
Paes de Barros (MT), ex-presidente da CPI do Banestado, aparece como
beneficiário de 70 mil reais. Também consta da lista o ex-senador
Heráclito Fortes (DEM-PI), conhecido por ter liderado a bancada de
Daniel Dantas no Senado. O parlamentar piauiense teria recebido 60 mil
reais. O petista Delcídio Amaral (MS), ex-presidente da CPI dos
Correios, teria embolsado 50 mil reais.
As acusações também atingem o Judiciário mineiro. São citados quatro
desembargadores no documento, todos como beneficiários do esquema.
Corrêa de Marins (55 mil reais) foi corregedor regional eleitoral,
vice-presidente do Tribunal Regional Eleitoral e presidente do Tribunal
de Justiça. Faleceu em 2009. Rubens Xavier Ferreira (55 mil reais)
presidiu o TJ-MG entre 1998 e 2000. Ângela Catão (20 mil reais) era
juíza em 1998 e foi investigada por crimes de corrupção e formação de
quadrilha pela Operação Pasárgada, da PF. Apesar disso, foi promovida a
desembargadora do Tribunal Regional Federal de Brasília em 2009. A
magistrada é acusada de ter participado de desvios de recursos de
prefeituras de Minas e do Rio de Janeiro. Também juíza à época da
confecção da lista, Maria das Graças Albergaria Costa (20 mil reais) foi
do TRE de Minas e atualmente é desembargadora do TJ-MG. Dos tribunais
superiores, além de Mendes consta o ex-ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) Nilson Naves (58,5 mil reais).
Um dado a ser considerado é o fato de que, em janeiro de 2009, Mendes
ter concedido o habeas corpus que libertou Souza da cadeia. Também foi
libertado, no mesmo ato, Rogério Lanza Tolentino, que aparece na lista
do valerioduto como beneficiário de 250,8 mil reais “via Clésio
Andrade/Eduardo Azeredo”. O ministro do Supremo entendeu que o decreto
de prisão preventiva da dupla não apresentava “fundamentação
suficiente”.
Chamam a atenção alguns repasses a meios de
comunicação. Entre os beneficiários da mídia aparecem a Editora Abril,
destinatária de 49,3 mil reais “via Clésio Andrade/Usiminas/Mares Guia”,
e Grupo Abril, com o mesmo valor, mas sem a intermediação da Usiminas.
Há ainda um registro de 300 mil reais para a Bloch Editora, assim como
um de 5 mil reais para o Correio Braziliense. O principal jornal de Brasília não é o único beneficiário do grupo Diários Associados. O jornal Estado de Minas recebeu 7 mil reais, assim como o jornal mineiro O Tempo
(76 mil reais), de propriedade do ex-deputado tucano Vittorio Medioli
que, como pessoa física, segundo a lista, recebeu 370 mil reais.
As novas informações encaminhadas à Polícia Federal, acredita
Miraglia, não só poderão levar à reabertura do caso da morte da modelo
como podem ampliar a denúncia do valerioduto tucano. O grupo sem foro
privilegiado, sobretudo os intermediários do esquema, ficam mais
vulneráveis a condenações na Justiça comum, como é o caso de Mourão e de
sua assistente, Denise Pereira Landim, beneficiária de 527,5 mil reais,
segundo o documento.
Nos bons tempos, os dois se divertiam alegremente em passeios de iate
ao lado de Cleitom Melo de Almeida, dono da gráfica Graffar,
fornecedora de notas frias do esquema. Almeida aparece como beneficiário
de 50 mil reais. A Graffar, de 1,6 milhão de reais
Carta Capital
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