E FHC negou o inegável: que seu governo foi fortemente influenciado por Margaret Thatcher.
FHC não deve ter ficado particularmente impressionado com as
celebrações, no Reino Unido, pela morte de Thatcher. Na própria BBC
Brasil, o economista Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e da
chamada Escola de Chicago, dissera numa entrevista sobre o legado da
Dama de Ferro: “Ela teve impacto principalmente no primeiro mandato do
governo Fernando Henrique Cardoso. Houve uma onda que começou com
Collor, mas que foi consolidada com o Fernando Henrique Cardoso. Uma
onda de privatizações que mudou a face da economia brasileira,
principalmente em setores-chave como siderurgia, telecomunicações e o
próprio setor elétrico, em parte privatizado.”
FHC negou Thatcher numa entrevista concedida à BBC Brasil, e reproduzida aqui pelo Diário.
BBC Brasil – Em sua opinião, qual o legado deixado pela ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher?
Fernando Henrique Cardoso - Eu acho que é de firmeza. Tomou decisões,
foi em frente. Deu um exemplo de que para governar você precisa ter
crença e avançar. Eu posso não concordar com as crenças, mas ela foi
firme.
BBC Brasil - Com quais crenças de Thatcher o senhor não concorda?
FHC – No caso específico, eu nunca fui favorável ao desmonte da vida
sindical e também a uma visão demasiado pró-liberdade de mercado. Eu sou
social-democrata, não tenho essa mesma percepção.
BBC Brasil - Mas alguns analistas veem uma inspiração em Margaret Thatcher na
abertura econômica e nas privatizações que senhor fez em seu governo. O
senhor concorda com essa avaliação?
FHC – Não. Abertura econômica é outra coisa. Como o mundo marchava,
como marcha, para uma integração crescente das economias, tem que abrir a
economia. Agora, não houve inspiração. De minha, parte nenhuma. É muito
mais uma questão prática dos interesses do Brasil do que inspiração de
modelos.
BBC Brasil - As privatizações que o senhor fez em seu governo então não foram inspiradas nesse modelo neoliberal?
FHC – Não. Foi na necessidade de você modernizar certos setores. O
Estado tinha uma crise fiscal, não tinha recursos para trazer essas
soluções tecnológicas, nem dispunha de tecnologia, por exemplo, na
questão de telecomunicações.
Por outro lado, em certas empresas eu acho que a atividade era
necessária para dar força a elas, como a questão da Embraer e da Vale do
Rio Doce. Eram repartições públicas, não tinham como competir e, como
você vai marchar para um mundo de competição, você tinha que fazer.
“Abertura econômica é outra coisa. Como o mundo marchava, como
marcha, para uma integração crescente das economias, tem que abrir a
economia. Agora, não houve inspiração. De minha, parte nenhuma. É muito
mais uma questão prática dos interesses do Brasil do que inspiração de
modelos.”
Fernando Henrique Cardoso ex-presidente
Mas eu nunca fui favorável, por exemplo, a privatizar a Petrobras, o
Banco do Brasil. Eu acho que você tem que ter aí alguns instrumentos que
o Estado disponha deles.
Se bem que acredito também que a forma de funcionar desses setores
produtivos estatais deve ser também na competição. A mola do mundo
moderno é a inovação e a competição.
BBC Brasil - O senhor acha que houve um impacto das ideias de Thatcher nas privatizações que aconteceram em outros países da América Latina?
FHC – Eu não sei, provavelmente na Argentina mais fortemente que em outros países; no Chile, em certos momentos.
Não posso negar que mesmo no Brasil ela teve (uma influência). Muita
gente passou a ter uma visão mais pró-mercado, mais pró-liberalização em
função dela. Não foi o meu percurso, eu era muito mais ligado aos
(ex-primeiros-ministros britânicos) Gordon Brown, Tony Blair, à Terceira
Via, (ao ex-presidente dos EUA Bill) Clinton.
Mas, mesmo assim, eles nunca me inspiraram propriamente. Nós aqui
temos uma força da questão local que é muito grande, nossos problemas. O
que nós tínhamos que fazer aqui era adaptar a economia brasileira ao
processo que estava correndo no mundo, que era de maior integração
econômica.
BBC Brasil - Muitos analistas chegaram a decretar o fim desse ideário neoliberal
de Thatcher com a crise de 2008. Na avaliação do senhor, como
ex-presidente e sociólogo, isso pode realmente acontecer? Estamos
seguindo para um modelo mais estatista?
FHC – Eu acho difícil, as ideias vão e vêm dependendo das
circunstâncias. Como eu disse a você, do meu ângulo, é preciso haver um
certo equilíbrio. O Estado tem que existir sempre como uma força
reguladora, porque o mercado largado a si mesmo traz muita
irracionalidade. Por outro lado, se não houver o mercado, o Estado leva
ao arbítrio e à burocratização, à escolha de parceiros, a preferências
políticas, a uma coisa que não é positiva.
Então tem que haver um equilíbrio entre essas forças. Eu acho que
mesmo a partir da crise o que vai acontecer é isso. Não vai morrer o
ideal de você ter uma economia competitiva ou mais liberdade de ação dos
agentes econômicos, nem vai morrer o ideal de termos um Estado que seja
capaz de redistribuir renda e tomar medidas de política social que são
necessárias.
BBC Brasil - Thatcher sempre foi crítica a uma maior integração europeia e tinha
restrições ao euro. Ela morre em um momento em que o bloco ainda está
lutando para sair da crise. O senhor acha que a história pode vir a
provar que ela estava certa, que a União Europeia pode se esfacelar?
FHC – Eu não acredito, a minha visão é outra. Eu acho que a Europa
deveria ter se integrado mais, para ter uma política fiscal mais
compatível com a política monetária, não menos. A integração europeia
foi, do ponto de vista da civilização, muito importante, primeiro porque
acabou com a tensão de guerra na Europa, só isso já valeu muito.
O caminho para esses países todos é de maior integração.
Você vê, juntamente com o liberalismo da Thatcher existia um certo
nacionalismo. É curioso, sempre se atribui aos liberais uma visão menos
nacional, e ela tinha as duas coisas.
Ao mesmo tempo ela teve uma relação bastante conturbada com a América
Latina, principalmente com a Argentina, com a Guerra das Malvinas
(1982).
BBC Brasil - Como o senhor avalia a relação dela com a América Latina?
BBC Brasil - Como o senhor avalia a relação dela com a América Latina?
FHC – Ela atuou de acordo com os interesses estritos da Inglaterra e
sempre atuou com toda força. Não quis saber de negociação com a
Argentina, em um momento em que o Brasil (por exemplo) apoiou a
Argentina.
BBC Brasil - O senhor já esteve com Thatcher? Em que circunstância?
FHC – Sim. Ela já não era mais primeira-ministra e eu era presidente.
Ela foi à embaixada do Brasil (em Londres) e almoçou comigo.
BBC Brasil - E como foi o almoço?
FHC – Foi bem, ela disse uma frase que eu me recordo. Ela perguntou:
“How long it lasts your term, sir?” (Quanto tempo dura seu mandato,
senhor?). Eu disse que eram quarto anos e ela respondeu: “That’s
ridiculous!” (Isto é ridículo!).
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