Em entrevista ao jornal português Expresso, o
ex-presidente Lula afirma que o Brasil conseguiu provar que é possível
crescer e distribuir renda ao mesmo tempo; ele também abordou temas como
a espionagem americana; "a presidente Dilma se comportou como a chefe
de Estado de um país que teve a sua soberania ferida. Falou o que 200
milhões de brasileiros queriam falar. E foi além: deu dimensão prática à
dimensão da indignação do povo brasileiro, ao adiar a visita oficial
que faria aos Estados Unidos", disse ele; íntegra
247 - Em entrevista ao jornal português Expresso, o ex-presidente Lula abordou temas como espionagem americana, Copa do Mundo, integração da América Latina, além da relação entre o Brasil e Portugal. Confira a íntegra:
Por Maria da Paz Trefaut – São Paulo
O ex-Presidente brasileiro, Lula da
Silva, prefaciou o livro de José Sócrates “A Confiança no Mundo” e virá a
Lisboa quarta-feira para assistir ao lançamento da obra. Numa
entrevista ao Expresso, à qual respondeu por escrito, explica porque o
fez e comenta o escândalo da espionagem da internet e das comunicações
oficiais de países como o Brasil feita pela NSA norte-americana. Fala,
também, das recentes manifestações nas grandes cidades brasileiras, do
Mundial de Futebol e da necessidade de uma política económica
alternativa aos dogmas do neoliberalismo.
Porque aceitou fazer o prefácio do livro de José Sócrates?
Porque sou contra a tortura. Acho
extremamente significativo que um homem, que foi primeiro-ministro de
Portugal, tenha a humildade de voltar para a universidade e investigar
um tema tão forte e de tanta importância para a promoção dos direitos
humanos quanto a tortura.
Fora a tradicional retórica de países irmãos, como estreitar, de facto, os laços entre Brasil e Portugal?
Não basta dizer que somos países
irmãos, mas é importante dizer que a nossa relação já é muito maior do
que isso. O nosso intercâmbio cultural é muito forte, o nosso diálogo
político é substantivo. Há muitos investimentos brasileiros em Portugal,
como a Embraer, e de empresas portuguesas no Brasil, como a Portugal
Telecom. Temos um grande potencial de parceria para atuar em países
terceiros, principalmente na África e devemos explorá-lo mais. Temos que
nos preocupar com o que faremos daqui para a frente. Trabalhar as
parcerias das nossas universidades e das nossas empresas. Precisamos ter
mais estudantes brasileiros em Portugal e mais portugueses no Brasil.
De mais colaboração científica, artística e de mais turismo entre os
dois países.
Como viu a reação de Dilma
ao escândalo Snowden, discursando na Assembleia Geral da ONU e
confrontando Obama por causa da ciberespionagem visando o Brasil?
A Presidente Dilma se comportou como
a chefe de Estado de um país que teve a sua soberania ferida. Falou o
que 200 milhões de brasileiros queriam falar. E foi além: deu dimensão
prática à dimensão da indignação do povo brasileiro, ao adiar a visita
oficial que faria aos Estados Unidos. São gravíssimos os atos de
espionagem praticados pela Agência Nacional de Segurança dos EUA contra
os chefes de Estado do Brasil e do México. Nada pode justificar a
interceção de telefonemas e a invasão da correspondência reservada dos
Presidentes da República de países amigos, ferindo a sua soberania e
desrespeitando os princípios mais elementares da legalidade
internacional. Imagine o escândalo nos Estados Unidos se algum país
amigo intercetasse ilegalmente, sob qualquer pretexto, os telefonemas e a
correspondência reservada de seu Presidente…
Sempre apoiou Cuba, o regime
bolivariano da Venezuela e Evo Morales, na Bolívia, muitas vezes
contrariando sectores da opinião pública brasileira. Mantém essa linha?
Sou um defensor da autodeterminação
dos povos. Cada país deve definir a sua economia, a sua organização
política e partidária, a sua história e cultura. Isso vale para
Portugal, para o Brasil, para os Estados Unidos, e deve valer também
para Cuba, Venezuela e Bolívia, que têm o direito de escolher seus
caminhos, sem ingerências. O melhor caminho para a América Latina será o
decidido pelo povo e governos da região. Vejo na Europa, muitas vezes,
uma visão simplificada e deturpada da América Latina.
Evo Morales, por exemplo, governa a
Bolívia há dez anos, democraticamente. Foi eleito e reeleito, com mais
de 60% dos votos, tendo quase todos os meios de comunicação contra si. A
Bolívia está crescendo e distribuindo rendimento. Antes de Evo, o país
vivia em crise institucional permanente. Morales é melhor e mais
democrático do que a maioria dos que estão por aí, em diversos
continentes.
O Brasil deve continuar a apostar no
Mercosul, na integração da América do Sul, na Comunidade dos Estados
Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) e na América Latina. Foi assim
que o nosso continente deu um salto histórico na última década. Por ser a
maior economia do continente, o Brasil deve continuar a investir,
política e economicamente, no desenvolvimento e integração regional,
respeitando a soberania de cada país.
A China pretende financiar e
construir novos canais no Panamá. Como vê esta iniciativa e, de um modo
geral, a penetração económica chinesa na América Latina?
Um yuan investido pelos chineses na
América Latina é tão importante quanto um euro investido pelos europeus
ou um dólar americano. Qualquer soma que seja para o bem da América
Latina, respeitando as premissas de cada país, é bem-vinda.
Sob a égide do PT (Partido
dos Trabalhadores, esquerda), 40 milhões de brasileiros saíram da
pobreza e os bancos lucraram como nunca. É possível governar,
contentando empresários e trabalhadores ao mesmo tempo?
Adotámos um novo modelo de
desenvolvimento baseado na distribuição do rendimento e na inclusão
social. O Brasil libertou-se do absurdo dogma neoliberal de que é
impossível crescer ao mesmo tempo que se distribui riqueza. Fizemos
justamente isso, com políticas ativas de transferência de rendimento e
subida do salário real. Foi o facto de 36 milhões de pessoas terem saído
da pobreza e de 40 milhões terem ascendido à classe média que fez
aumentar a faturação das empresas produtivas e dos bancos. Nestes dez
anos, todos os sectores da sociedade brasileira tiveram aumento de
rendimento, mas o dos mais pobres cresceu o triplo dos mais ricos.
Integrou um movimento que levou à criação de uma Assembleia Constituinte e à reconquista das liberdades democráticas. Hoje, porém, o Congresso é uma das instituições mais desacreditadas do Brasil. Porquê?
O Brasil vive o mais longo período
de democracia da sua história. A crise de credibilidade do Parlamento
não é exclusivo nosso, existe no mundo inteiro. Os estudiosos falam
inclusive numa ‘crise da representação’.Mas o importante é que, a cada
nova eleição, o povo pode mudar os parlamentares, se quiser. E, no caso
brasileiro, o desgaste de imagem de muitos políticos não tem impedido o
país de avançar.
Uma das principais críticas ao PT é a instrumentalização partidária do Estado. O
Supremo Tribunal Federal, com maioria de juízes indicada por governos
do PT, condenou ex-ministros e deputados por participarem num esquema de
compra de votos no Congresso (conhecido como ‘Mensalão’). Como vê este
problema?
Não houve nenhuma instrumentalização
do Estado. Sempre que a esquerda ganha, a direita acusa-a de
instrumentalizar o Estado, com o objetivo claro de a inibir de
substituir, nos cargos de natureza política, as pessoas que estavam no
comando. O PT não foi apenas republicano na sua governação. A maioria
das pessoas que escolhemos para cargos de confiança já eram funcionários
do Estado. Eram competentes, caso contrário o governo não teria dado
tão certo. Sobre a outra questão, como ex-presidente da República,
considero que não devo falar sobre um processo que está na Suprema Corte
e ainda não foi concluído.
Da Turquia ao Brasil, a
classe média manifestou-se em força, pedindo transparência, combate à
corrupção e boa aplicação dos investimentos públicos (não em ‘elefantes
brancos’ como os estádios do Mundial de Futebol, mas em educação, saúde e
transportes). Que lição se tira dessas manifestações?
Não sei se as reivindicações na
Turquia foram as mesmas do Brasil. O que sei é que poucos países do
mundo têm mais transparência e mecanismos de controlo dos recursos
públicos do que nós. Publicamos os gastos do governo em tempo real na
internet, há a Controladoria-geral da União, o Tribunal de Contas da
União, um Ministério Público independente, a Polícia Federal, os órgãos
de vigilância ambiental, a imprensa, ONG, sindicatos, todos fiscalizam
os gastos do governo. Só há uma maneira de combater a corrupção:
denunciando e investigando. A verdade é que a maior parte das denúncias
de corrupção é feita por organismos de controlo do próprio Estado. Ou
seja, é o poder público que se fiscaliza a si mesmo.
Sobre o Mundial de Futebol, será uma
oportunidade para as pessoas conhecerem o Brasil. Eu vi a emoção dos
japoneses chorando quando conquistaram as Olimpíadas e não era de
tristeza. Muitos dos principais investimentos em aeroportos e transporte
urbano que estão a ser feitos continuarão beneficiando a população. É
errado pensar que uma coisa tira dinheiro de outra. São investimentos
diferentes.
Acha que o Brasil conseguirá manter elevadas taxas de crescimento após o Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos?
Independentemente do Mundial e das
Olimpíadas, o Brasil tem planeados investimentos em infraestrutura de
longo prazo. O plano de concessões em infraestruturas prevê 325 mil
milhões dólares de investimento em estradas, portos, aeroportos e
rodovias. A economia brasileira tem mantido um ritmo sustentável de
crescimento nos últimos anos e não estamos subordinados a esses eventos.
Eles devem contribuir para movimentar a economia, mas são apenas parte
de uma série de medidas económicas que visam garantir, não apenas o
crescimento, mas também a distribuição da riqueza. A Petrobras, por
exemplo, tem investimentos previstos, até 2017, de 236 mil milhões de
dólares para ampliar a produção de petróleo.
Acha que o modelo de crescimento dos BRIC está em causa por ter feito crescer o PIB sem ter aprofundado a democracia?
Não me cabe falar pelos demais BRIC,
mas o sucesso do Brasil foi justamente ter feito o PIB crescer com
vasta inclusão social e ampliação da democracia.
Há alguma alternativa para a desordem económica mundial e para o vácuo político resultante da crise na Europa?
As soluções para a crise europeia e
económica mundial foram bem discutidas nos encontros do G20 em
Pittsburgh e Londres, em 2009. Lá, os líderes das maiores economias do
mundo definiram como metas o incentivo ao crescimento económico, o fim
dos paraísos fiscais e a regulamentação do sistema financeiro. O
problema é que as decisões políticas não foram postas em prática quando
os governantes retornaram aos seus países. Quando isso não acontece e só
discutimos ajustes fiscais, quem é prejudicado é o povo. Eu acredito
que a solução para essa crise não será económica, mas sim política.
Infelizmente, os líderes políticos estão a delegar as suas
responsabilidades em técnicos de terceira ordem.
Como vê a evolução económica
da crise europeia? Acha que Portugal vai ser um exemplo positivo ou
negativo da intervenção do FMI, Banco Central Europeu e Comissão
Europeia?
Acredito que não deveria ter sido
exigido, a países como Portugal e Espanha, que possuem economias
consolidadas e alto rendimento per capita, um ajuste tão rigoroso em tão
curto espaço de tempo. Poderia ter sido negociada uma recuperação com
um prazo mais longo, sem a brutal recessão que aconteceu e sem tanto
sacrifício da população. Penso que a saída efetiva da crise europeia,
que tem atingido principalmente os trabalhadores e os mais pobres, só
acontecerá quando for retomada a perspetiva de crescimento com criação
de empregos. Acho assustadora a falta de esperança que se vê hoje na
Europa, especialmente entre os mais jovens.
Considera que há uma crise do ideal socialista? Que pensa dos novos protestos orquestrados através das redes sociais?
Continuo acreditando nos ideais do
socialismo democrático e na construção de uma sociedade mais justa, mais
solidária, mais humana. São valores cada vez mais necessários e válidos
para o mundo. A maioria das pessoas que tem saído às ruas, mesmo sem
conhecer essas doutrinas, tem defendido esses valores, não repudiado. Os
protestos no Brasil mostram que há uma juventude que quer mais, e isso é
saudável. Claro que há aqueles que confundem o direito de protestar com
o direito de depredar e saem em provocações sem sentido. E há aqueles
que negam a política. Isso é o mais grave. Aprendi que não há opção fora
da política, do diálogo, da democracia. Quando se nega a política, o
que vem depois é pior, é o regime da força, é a ditadura. Basta vermos o
que aconteceu no Egito. Escrevi em um artigo que a sociedade se tornou
digital, mas a política continua analógica. O desafio atual é tornar a
democracia mais participativa, incluir cada vez mais gente na política,
os políticos ouvirem mais as pessoas e trabalharem com mais afinco.
Depois de deixar a
presidência, tem feito diligências para aproximar o Brasil dos países
africanos, independentemente dos regimes políticos que adotam. De que maneira vê o protagonismo africano na próxima década e que papel cabe ao Brasil nesse jogo geopolítico?
O Brasil e a África têm afinidades
culturais e problemas semelhantes e a aproximação permite que possamos
aprender uns com os outros. Estou convencido que está surgindo uma nova
África. A democracia está a consolidar–se na maioria dos países da
região. Mesmo com a crise internacional, o continente africano cresceu
na última década a uma taxa média de 5% ao ano. O fluxo de comércio
entre Brasil e África quintuplicou em dez anos. Quero compartilhar a
experiência bem–sucedida do Brasil no combate à pobreza, na ampliação da
produção de alimentos, na produção de energia limpa. Não queremos
exportar modelos. Desejamos dialogar sobre a nossa experiência,
respeitando a cultura e as condições políticas locais. Brasil e Portugal
poderiam atuar de forma mais integrada, principalmente nos países de
língua portuguesa.
Brasil 247
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