Para ex-ministro e idealizador da Comissão Nacional
da Verdade, ensino militar deveria incluir direitos humanos e dar conta
de um mundo multipolarizado
Marcello Casal Jr / ABr
Principal idealizador da Comissão Nacional da
Verdade e ex-ministro de Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vannuchi
considera que exista um “tijolo ideológico” dentre os militares
brasileiros, que ainda creem em uma ameaça comunista e um mundo dividido
entre duas potências e duas ideologias. “É preciso tirar esse ‘tijolo’,
mas o problema é que não entra nada no lugar. A Academia Militar de
Agulhas Negras, por exemplo, pela terceira vez cria uma turma com o
paraninfo Emílio Garrastazu Médici. E lá se ensina também que no dia 31
de março de 1964 o Brasil foi salvo do comunismo”, lembrou. “Se
estivéssemos iniciado uma nova formação dos militares em 1999, já
teríamos formado de major para baixo com uma outra visão.”
Para o assessor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva há 33
anos, as Forças Armadas deveriam ser as maiores interessadas na abertura
de arquivos e no resgate da memória trazido pelo organismo, que vem
recebendo uma avalanche de críticas desproporcional. “Há um
agigantamento das críticas sobre os eventuais problemas, que não
necessariamente dos sete membros, são os problemas da estrutura, na qual
as Forças Armadas têm uma enorme dificuldade de fazer a passagem
necessária e ter uma atitude de forme colaboração, de identidade no
processo. A postura que as Forças Armadas tinham de ter era de
identidade”, disse em entrevista a CartaCapital. “É a elas que mais interessa que se separe o joio do trigo.”
Vannuchi explicou ainda que os abusos e desrespeito aos direitos
humanos que ainda exige dentre os agentes do Estado evidencia os
resquícios da ditadura, mostra a necessidade de se debater a
desmilitarização da polícia e reflete, acima de tudo, os mais de 500
anos de violência brutal que marcam a nossa história.
Confira os principais trechos da entrevista:
“TIJOLO IDEOLÓGICO”
No lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade, que foi
meu primeiro passo nessa luta, eu falei: “Dentre os maiores beneficiados
deste livro, desse debate, estão as Forças Armadas. É a elas que
interessa mais que se separe o joio do trigo. Eles não conseguem fazer
por um “tijolo ideológico”.
O ensino militar nunca foi alterado. O Fernando Henrique criou em
1999 o Ministério da Defesa, mas pela metade:a lei concebia o ministério
como organismo de interação administrativa entre as três Forças, sendo
que seus comandantes se reportam diretamente ao presidente da república.
Com o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, os chefes das Armas pararam
de ter audiência direto com o presidente. E o presidente, hoje, recebe o
ministro da Defesa.
A Academia Militar de Agulhas Negras, por exemplo, pela terceira vez
cria uma turma com o paraninfo Emílio Garrastazu Médici. E lá se ensina
também que no dia 31 de março de 1964 o Brasil foi salvo do comunismo.
Se estivéssemos iniciado uma nova formação dos militares em 1999, já
teríamos formado de major para baixo com uma outra visão.
Fui ao Haiti duas vezes visitar a Minustah (Missão das Nações Unidas
para a estabilização no Haiti) e eles me mostraram um módulo de oito
horas de direitos humanos da ONU, em inglês. Trouxe para o Jobim e
disse: está pronto. São oito horas dentro de um curso de formação de 200
horas, sobre o que são direitos humanos, a concepção, os principais
tratados internacionais, o que é missão de paz, o respeito a crianças,
adolescentes, a pluralidade, essas noções que precisam. E no lugar do
mundo comunista versus capitalista, o que se tem de discutir hoje?
Que o
mundo é um mundo pós- Guerra Fria, que ele começou a se esboçar com o
desmoronamento do Mundo de Berlim e do fim do bloco soviético. Que de lá
para cá já houve três ou quatro grandes teorias, que o ataque às Torres
Gêmeas de setembro de 2001 desencadearam um processo que ainda está
totalmente em curso. Que nessa multipolaridade a região sul-americana
tem sido aquela com governos de conteúdo democrático, eleitoral,
compromissados com o social, que entendem que o desafio é combater a
fome e a verdadeira segurança nacional está ligada à segurança
alimentar. Que não somos satélites e o mundo não está dividido em
blocos. Então, temos interesses nas melhores relações com os Estados
Unidos, mas sem orbitar em volta desse. Vamos ter cuidado também de ter
grandes relações com a China, a Europa, a África. E os militares não
terão essa posição enquanto ensinarem que o Brasil foi livrado de uma
ditadura em 1964.
ESQUIZOFRENIA
Sabemos, por exemplo, como pensam os juízes brasileiros. Mas não os
militares. O Plano Estratégico de Defesa Nacional foi aprovado, mas é
daqueles que podem demorar anos para começar a ser aplicado. E a lei é
bonita, mas ninguém toma iniciativa de, por exemplo, mudar no ensino e
colocar aula de direitos humanos em Agulhas Negras. Eu mesmo dei aula na
academia de polícia, e é aquele problema esquizofrênico: você tem aula
de direitos humanos e em seguida uma sobre abordagem. A lei manda que
você se apresente e peça documentos, mas um colega que fez isso, eles
aprendem, levou uma azeitona no meio da testa e não viveu mais 10
segundos. Então, a abordagem passa a ser: apontar a arma, dar um chute
no joelho e dominar, ou seja, esse horror que temos até hoje.
Mas temos de entender também em 500 anos de violência brutal não vamos criar uma polícia maravilhosa.
CARÁTER PEDAGÓGICO
Há um agigantamento das críticas sobre os eventuais problemas, que
não necessariamente dos sete membros. São os problemas da estrutura, na
qual as Forças Armadas têm uma enorme dificuldade de fazer a passagem
necessária e ter uma atitude de firme colaboração, de identidade no
processo. A Comissão da Verdade está fazendo um trabalho relevante, o
debate mais vivo que o País já fez. Na hora em que vier o relatório da
comissão, teremos a peça inaugural de um novo ciclo. Não produzirá a
verdade cabal sobre tudo, mas é importante trabalhar em conjunto. Não
temos de esperar o relatório final daqui a dois anos para divulgar tudo.
AVANÇOS
Eu faria um prato muito especial sobre a bomba do Riocentro e a bomba
da OAB, pelo argumento de que não estão cobertos pela Lei de Anistia de
1979, então deixa de lado a polemica e o erro que o Supremo cometeu.
E vamos esperar o momento de provocar o Supremo para ele corrigir
isso. A história dos supremos é alterar as suas jurisprudências
anteriores. Aqui vai ser assim também. Não sabemos quando, se em um ou
dez anos.
O relatoria da comissão pode ser uma coisa absolutamente pífia, mas
também um documento que traga recomendações como: que o Poder Judiciário
reexamine a sua decisão de abril de 2010 na ADPF (Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental) da OAB para compreender que de
fato a Lei de Anistia de 79 não pode ser interpretada da forma como foi.
Esse é meu ponto: acho uma bobagem fazer uma luta para a revisão da lei
de anistia. Não se faz isso na historia do direito.
Você não faz uma Lei de Anistia, chega ao ano de 2013 e revê aquela
lei, porque daí você viola um pilar do direito, que é a ideia da
retroatividade da lei. A lei é para o seu tempo. Não estou falando nem
da interpretação correta, nem do “re”, porque a reinterpretação que está
sendo feita é fajuta.
Temos de trabalhar para criar situações para o Supremo, o mais cedo
possível, reexamine. Há três possibilidades. A menos promissora é a o
que já está em curso, do embargo de instrumento da OAB para reexaminar a
ADPF. É quase como infringentes, mas não é porque só teve dois votos e
não quatro. É pertinente, porque já há ministros novos. O Joaquim
Barbosa já deu entrevista, inclusive, insinuando que votaria diferente –
ele não estava votando naquele dia por razoes de saúde.
Há também a decisão da OEA, do fim de 2010. Entre 11 e 15 de novembro
agora a Corte fará uma sessão no Brasil, como instrumento pedagógico e
de aproximação com os judiciários nacionais. Nessa sessão há uma chance
de o presidente da Corte, Diego García-Sayán, se encontrar com o Joaquim
Barbosa e dizer: ‘Presidente, quando o senhor está pensando em examinar
nossa decisão de dezembro de 2010 sobre a guerrilha do Araguaia?’.
Porque lá fala também da Lei de Anistia, que ela não pode continuar
significando impedimento para a apuração dos fatos.
E terceira, que é a mais promissora de todas, diz respeito às últimas
ações do MPF, que com muito brilhantismo selecionou apenas os
desaparecimentos. Como reiteraram alguns ministros à época, com isso
pode-se abrir um precedente para derrubar a Lei de Anistia de 1979.
PUNIÇÃO
Não sou uma pessoa que considera uma vitória colocar os torturadores
na cadeia. Os direitos humanos projetam um mundo no qual nem prisão
haverá mais, tamanho o grau de consciência social, cidadania e respeito
ao próximo. Isso vai demorar uns milênios, e então temos de temos de
trabalhar dois pontos: penas alternativas e justiça restaurativa. A
reparação pode ser também simbólica. Por exemplo: a Justiça declara que
Carlos Brilhante Ultra é culpado de prática de tortura, estupro,
desaparecimento de cadáver. É, portanto, indigno de serviço público e
serviço militar.
Eu respeito e não vou brigar com qualquer familiar que disser que
isso não basta. O mais importante é o que vem daqui para frente: todo
que morreram, morreram lutando por um futuro diferente, e estamos
tentando garantir isso pela primeira vez em 513 anos de Brasil, no
momento em que o país revê essa violência, que nem é a maior de todas. O
País, por exemplo, não examinou a escravidão, o genocídio indígena, a
matança de jovens na periferia de hoje.
POLÍCIA DESMILITARIZADA
O debate da desmilitarização da polícia voltou com força depois dos
protestos de junho. Isso é muito positivo. A relação polícia-bandido é o
extremo do pior da sociedade: o aparelho da violência oficial e a
violência criminal colidem. E eu não tenho nenhum sentimento de glamour
pelo pobre, pelo bandido, porque são vítimas da violência institucional
que se transformaram em figuras cruéis, sádicas, violentas.
Mas quando a gente falava de desmilitarização é estritamente no
sentido da subordinação ao Exército e de uma concepção interna. Não era
uma ideia de polícia democrática. Aquela imagem da polícia londrina
desarmada sempre é sedutora. Uma polícia que é treinada para pegar o
manifestante só com um cassetete e sem arma de fogo... Mas São Paulo não
é Londres e uma polícia na sociedade que não tenha revolver é um
contrassenso. O processo educacional que vai gerar uma sociedade em que
esse perigo desapareça demora anos. Então tem de haver polícia, e ser
bem qualificada, bem remunerada, reciclada. Tem de haver também a
polícia comunitária. A UPP, por exemplo, é a ideia geral no caminho
certo, com os problemas de realização que ela sempre teve e agora
carimbada pelo episódio Amarildo.
A desmilitarização da polícia tem de passar pelo Judiciário e, possivelmente, eliminar a Justiça Militar.
Carta Capital
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