UM JULGAMENTO DE EXCEÇÃO
Luiz Moreira
Em "Profanação e justiça concreta na Suprema Corte"
artigo publicado no Portal Carta Maior, o Governador Tarso Genro retoma
a questão do chamado julgamento do mensalão, corrigindo, porém, uma
visão, presente em artigo anterior, segundo a qual o julgamento seria
“devido”, “legal” e legítimo”. Conforme seu entendimento, o STF teria a
possibilidade de “condenar sem provas como absolver com provas”. Se,
entretanto, é alterado o diagnóstico sobre a correção do julgamento, a
meu sentir, permanecem insatisfatórias as razões que justificam a
condenação dos chamados “réus políticos”. São essas razões que me
interessam.
Começo com uma afirmação muitas vezes repetida durante este
julgamento e que é pronunciada como “mantra” pelos juristas no Brasil:
“cabe ao STF errar por último”. Esse poder de errar por último blindaria
suas decisões à crítica, tornando-as indisponíveis, inquestionáveis.
Disso decorre outro dogma segundo o qual “decisões judiciais não se
discutem, cumprem-se”. Essas posições indicam clara supremacia judicial,
resultando em protagonismo do sistema de justiça sobre os poderes
políticos.
Creio que posições como essas são inconciliáveis com regimes
democráticos, servindo de fundamento à confusão proposital que se faz
entre Estado de Direito e Democracia, ou entre Estado de Direito e
Estado Democrático de Direito, como se, no caso brasileiro ou em todos
os demais, as ditaduras do século XX não tivessem sido todas
constitucionais, mantidas com estrita colaboração do sistema de justiça,
isto é, pelo Judiciário e pelo Ministério Público.Um dos temas mais
candentes nas democracias são o exercício legítimo do poder e o modo que
se realiza sua contenção. Estabelecem-se assim uma estrutura
majoritária (a política) e uma contra majoritária (a judiciária). Desse
modo, as democracias têm uma organização horizontal do poder pela qual
direitos são reconhecidos pelos poderes políticos e defendidos pelo
sistema de justiça. Há assim uma tarefa positiva e outra, de contenção.
Essa estrutura horizontal é apenas um modo de estruturação do poder. A
questão democrática se insere na medida em que esse poder se subordina
aos cidadãos, numa estrutura verticalizada. Assim, emana da democracia
uma divisão de tarefas pela qual direitos são reconhecidos por uma
estrutura majoritária em que as deliberações provenientes dos poderes
representativos constatam as diversas e, por vezes, contraditórias
manifestações de vontade. A isso se chama “soberania popular” e é esta
que torna legítimo o poder estatal.
O dever de contenção é o exercido pelo sistema de justiça. Nesse
sentido, a tarefa do Judiciário é a de garantir que os direitos e as
garantias fundamentais sejam efetivados enquanto perdurar o marco
jurídico que os instituiu. Assim, o judiciário é, por definição,
garantista. Nesta seara uma diferenciação foi introduzida, no Brasil em
1988, com as prerrogativas conferidas ao Ministério Público, pelas quais
lhe cabe promover direitos. Portanto, o sistema de justiça detém uma
divisão de tarefas, cabendo ao Judiciário agir conforme um padrão de
inércia e ao ministério público o de promover as ações necessárias ao
cumprimento das obrigações jurídicas.
Essa diferenciação é especialmente relevante em duas searas, ou seja,
no direito penal e no direito tributário, pois, como se trata da defesa
da liberdade e da propriedade, as funções se especializam em
decorrência da exigência de as vedações estarem rigorosamente previstas
no ordenamento jurídico. Na seara penal, o Judiciário age como a
instância que garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o
acusador demonstre de forma inequívoca o que alega. Assim, a estrutura
se realiza de modo dicotômico: (I) ao acusador cabe produzir o arsenal
probatório apto a produzir a condenação e (II) aos cidadãos é deferida a
perspectiva de defender-se com os meios que lhe estiveram ao alcance.
Constrói-se, nesses casos, uma imunidade conceitual erguida para
salvaguardar as liberdades do cidadão ante o poder persecutório do
acusador.
Ora, como é o Estado que promove a acusação, por intermédio de um
corpo de servidores constituído especificamente para este fim, o
Judiciário se distancia da acusação e passa a submeter à acusação ao
marco da legalidade estrita, de modo que método e instrumento de suas
atuações sejam diferentes. Isso ocorre para garantir às liberdades um
padrão institucional que tem, no sistema de justiça, o Judiciário como
seu guardião.
É essa divisão de tarefas que propicia legitimidade ao sistema de
justiça. Caso contrário, por que as decisões judiciais seriam cumpridas?
Por que elas seriam respeitadas? Por que então os próprios cidadãos ou
entes da sociedade civil não resolveriam por si mesmos tais conflitos? É
o reconhecimento ao desempenho de um papel garantista que confere ao
Judiciário o acolhimento de suas decisões. Já o reconhecimento à atuação
do ministério público se vincula à promoção das obrigações jurídicas.
Desse modo, não se atribui ao Poder Judiciário o “fazer” justiça. O
que se lhe atribui é o desempenho de um papel previamente estabelecido,
pelo qual “fazer justiça” significa o cumprimento correto dos
procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Portanto, fazer
justiça é o desincumbir-se de uma correção procedimental. Certamente, a
legitimidade do sistema de justiça decorre de sua atuação técnica e de
sua vinculação a uma ordem jurídica legítima, na qual as obrigações
jurídicas são democraticamente formuladas. Justifica-se o cumprimento
das obrigações jurídicas e das decisões judiciais pela expectativa de
que estas sejam validamente imputáveis e que tal imputação se realize
conforme uma correção procedimental não sujeita a humores, a
arbitrariedades ou a imprevisibilidades.
Embora o desempenho desses papéis seja formalmente estabelecido, eles
não existem para si, não são ensimesmados. Ao contrário, existem por se
circunscreverem a uma autorização expressa dos cidadãos que lhe
infundem legitimidade. É assim que Montesquieu se vincula a Locke,
submetendo o exercício horizontal do poder à democracia, isto é, à
soberania popular. Demonstra-se, assim, que são a previsibilidade e a
imputabilidade universal das obrigações que legitimam a atuação do poder
judiciário e o conforma a um papel previamente delimitado. Assim, é
absolutamente incompatível com o regime democrático um Judiciário que
paute suas decisões por critérios extrajurídicos, conforme uma tradição
aristocrática.
Embora tenha redefinido sua posição, no sentido de amenizar as
faculdades conferidas por ele ao Judiciário, em artigo anterior,
“Mensalão e exceção: Carl Schmitt e Levandowski”, o Governador Tarso
Genro se inclina a caracterizar as faculdades conferidas ao Judiciário
como exercício ilimitado e arbitrário do poder. Diz ele: “No Estado
Democrático de Direito, a ideologia do Magistrado ‘seleciona’ a doutrina
jurídica, que ampara a decisão. Na ditadura (ou na ‘exceção’) esta
escolha é sufocada pelo olhar do Líder, através da Polícia. A Teoria do
Domínio Funcional dos Fatos foi, portanto, uma escolha ideológica, feita
para obter dois resultados: condenar os réus e politizar o julgamento”.
Diversamente, sustento que cabe ao Judiciário circunscrever-se ao
cumprimento de seu papel constitucional, de se distanciar da tentativa
de constatar as vontades, de aplicar ao jurisdicionados os direitos e as
garantias fundamentais, sendo, por isso, garantista e contra
majoritário. Tenho como incompatível com as modernas exigências de
justificação admitir que poderes estatais ajam segundo perspectivas
arbitrárias e ensimesmadas.
Penso, no entanto, que durante o julgamento da ação penal 470, o
midiatizado caso do “mensalão”, o STF se distanciou do papel que lhe foi
confiado pela Constituição de 1988, optando em adotar uma posição não
garantista, contornando uma tradição liberal que remonta à Revolução
Francesa.
Esses equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a ação
penal 470 em julgamento de exceção, por não adotar uma correção
procedimental, que pode ser delineada nos seguintes termos: (1) pressão
pela condenação do réus pelas emissoras de televisão; (2) recusa em
reconhecer aos réus o duplo grau de jurisdição; (3) utilização pelo
Relator do mesmo método da acusação; (4) opção pelo fatiamento do
julgamento; (5) a falta da individualização das condutas e sua
substituição por blocos; (6) a ausência de provas e a aplicação dos
princípios do direito civil ao direito penal e (7) na dosagem das penas a
subordinação de sua quantificação à prescrição.
(1) A cobertura
das emissoras de televisão, especialmente a Rede Globo, insistia em
estabelecer um paralelo entre os réus políticos e a corrupção. Esse
paralelo se realizava do seguinte modo: que a necessária condenação dos
réus teria papel pedagógico, pois, com ela, obter-se-ia um exemplo a ser
utilizado numa campanha midiática. Desse modo, uma concessão do Estado,
uma TV aberta, utiliza-se de métodos mercadológicos para definir que
cidadãos são culpados justamente no período em que esses cidadãos são
julgados. Abriram-se espaços para afirmar a culpa dos réus, sem permitir
igual espaço para a defesa. Definido o conteúdo da mensagem (a
culpabilidade dos réus), há a massificação dessa mensagem em todos os
seus telejornais. Claro está que pressão midiática, patrocinada em TV
aberta, cria não apenas um movimento pela condenação de cidadãos sob
julgamento, mas visa alinhar a decisão dos juízes à campanha pela
condenação desses réus. Assim, foi estabelecida uma correlação entre
condenação e combate à corrupção, de modo a estabelecer que os juízes
que são contrários à corrupção devem por isso condenar esses réus.
Contrariamente, os que absolvem os réus assim o fazem por serem
favoráveis à corrupção.
(2) A recusa em reconhecer aos réus o duplo grau de jurisdição. O STF
não deferiu aos réus o direito constitucional a ser julgado pelo
respectivo juiz natural. No Brasil, apenas alguns cidadãos fazem jus ao
chamado foro por prerrogativa de função. Assim, como é corriqueiro no
STF, desmembra-se o processo em que sejam réus cidadãos que não têm essa
prerrogativa, remetendo-os à instância competente para promover o
respectivo julgamento. Portanto, o STF negou à maioria dos réus deste
processo o mesmo direito que foi reconhecido a outros réus, nas mesmas
condições. Assim, a exceção consiste em criar regras que só valem para
alguns réus, exatamente aos que são alcançados pela campanha midiática
em prol de suas condenações.
(3) A utilização pelo Relator do mesmo método da acusação. O Relator
criou um paralelo entre seu voto e um silogismo. Desse modo, a
apreciação individual das condutas e a comprovação das teses da acusação
foram substituídas por uma estrutura lógica em que a premissa maior e a
premissa menor condicionam a conclusão. Dando formato silogístico a um
voto em matéria penal, o Relator vinculou o conseqüente ao antecedente,
presumindo-se assim a culpabilidade dos réus por meio não da comprovação
da acusação, mas por meio de sua inclusão num círculo lógico (argumento
dedutivo), acarretando, assim, violação ao devido processo legal, na
medida em que se utiliza de circunstância mais prejudicial ao cidadão,
ofendendo-se assim garantias e direitos fundamentais, mas também as
normas processuais penais de regência da espécie.
(4) Com o propósito de garantir a supremacia de uma ficção foi
estabelecida a narração como método em uma ação penal. Como no direito
penal exige-se a demonstração cabal das acusações, essa obra de ficção
foi utilizada como fundamento penal. Em muitas ocasiões no julgamento
foi explicitada a ausência de provas. Falou-se até em um genérico
"conjunto probatório", mas nunca se apontou que prova, em que folhas, o
dolo foi comprovado. Foi por isso que se partiu para uma narrativa em
que se gerou uma verossimilhança entre a ficção e a realidade.
Estabelecida a correspondência, passou-se ao passo seguinte que era o de
substituir o exame da acusação pela comprovação das teses da defesa.
Estava montado assim o método aplicado nesse processo, o de substituir a
necessária comprovação das teses da acusação por deduções, próprias ao
método narrativo.
(5) Como se trata de uma ficção, o método narrativo não delimita a
acusação a cada um dos réus, nem as provas, limita-se a inseri-los numa
narrativa para, após a narrativa, chegar à conclusão de sua condenação
em blocos. O direito penal é o direito constitucional do cidadão em ter
sua conduta individualizada, saber exatamente qual é a acusação, saber
quais são as provas que existem contra ele e ter a certeza de que o juiz
não utiliza o mesmo método do acusador. É por isso que cabe à acusação o
ônus da prova e que aos cidadãos é garantida a presunção de inocência.
Nesse processo, a individualização das condutas e a presunção de
inocência foram substituídas por uma peça de ficção que exigiu que os
acusados provassem sua inocência.
(6) Por diversas vezes se disse que as provas eram tênues, que as
provas eram frágeis. Como as provas não são suficientes para fundamentar
condenações na seara penal, substituíram o dolo penal pela culpa do
direito civil. A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a
criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que
algo houvera ali. Como essa suspeita nunca se comprovou, atribuíram
forma jurídica à suspeita, estabelecendo penas para as deduções. Com
isso bastava arguir se uma conduta era possível de ter sido cometida
para que lhe fosse atribuída veracidade na seara penal. As deduções
realizadas são próprias ao que no direito se chama responsabilidade
civil, nunca à demonstração do dolo, exigida no direito penal, e que
cabe exclusivamente à acusação.
(7) Na dosagem das penas a subordinação de sua quantificação à
prescrição. Durante o julgamento, o advogado Hermes Guerreiro sugere da
tribuna que o tribunal adotasse a pena aplicada pelo Ministro César
Peluso. Imediatamente o Relator o refutou, defendendo sua não aplicação,
pois, nesse caso, a pena estaria prescrita. Assim, fica evidenciada que
o Relator condiciona a definição da pena não à pretensão punitiva, mas à
execução da pena. Quando cidadãos são condenados, concatenam-se
procedimentos. Aplicam-se-lhes as penas cominadas à espécie,
verificando-se a existência de circunstâncias que a minoram ou a
aumentam. Por se tratar de seara penal, o juiz não tem margem para
arbitrariedades, para definir a pena segundo sua vontade. Uma vez
definida a pena, condizente com as especificidades do caso e as
particularidades do cidadão, o passo seguinte é o de sua execução.
Quando se executa a pena é que se verifica sua viabilidade. Nesta
passagem ficou demonstrado que o Relator subordinou a dose da pena à sua
viabilidade. Outra demonstração que ratifica esse vício jurídico, e que
evidencia que não se trata de mero acidente, ocorreu quando o Relator
aplicou, a um dos réus, lei não vigente à época dos fatos sancionados.
Alertado pelo Ministro Ricardo Lewandowski de que o princípio da
irretroatividade da lei penal não estava sendo observado, o Relator
substituiu a lei mais recente pela que regia o caso, mantendo, porém, a
mesma penalidade. Ocorre que na lei anterior os fatos cominados tinham
sanção menor. Como justificar a manutenção da mesma pena quando as
cominações eram diferentes? Essa contradição se explica apenas pela
subordinação da dose da pena à sua viabilidade. Uma vez mais fica
demonstrada a incorreção procedimental, o que mais uma vez evidencia
tratar-se de um julgamento de exceção.
Luiz Moreira é Doutor em Direito e Mestre em Filosofia pela UFMG.
Professor universitário. Diretor Acadêmico da Faculdade de Direito de
Contagem.
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