Talvez seja a idade, quem sabe as lembranças ainda vivas de quem atravessou a adolescência e o início da idade adulta em plena ditadura. Mas não consigo conviver com a ideia de que cidadãos como José Genoíno e José Dirceu possam ser condenados por corrupção ativa sem que sejam oferecidas provas consistentes e claras. A Justiça é um direito de todos. Mas não estamos falando de personagens banais.
Sei que os mandantes de atos
considerados criminosos não assinam papéis, não falam ao telefone nem deixam
impressão digital. Isso não me leva a acreditar que toda pessoa que não assina
papel, não fala ao telefone nem deixa impressão digital seja chefe de uma
quadrilha.
Sei que existe a teoria do domínio do
fato. Mas ela não é assim, um absoluto. Tanto que, recentemente, o célebre
Taradão, apontado, por essa visão, como mandante do assassinato de irmá Dorothy,
conseguiu sentença para sair da prisão. Contra Taradão havia confissões,
testemunhas variadas, uma soma impressionante de indícios que não vi no
mensalão. Mesmo assim, ele foi solto.
Não estamos no universo do crime
comum. Estamos no mundo cinzento da política brasileira, como disse o professor
José Arthur Gianotti, pensador do país e, para efeitos de raciocínio, tucano dos
tempos em que a geração dele e de Fernando Henrique lia O
Capital.
O país político funciona neste
universo cinzento para todos os partidos. Eu acho, de saída, que é
inacreditável que dois esquemas tão parecidos, que movimentaram quantias
igualmente espantosas, tenham recebido tratamentos diferentes – no mesmo tempo e
lugar.
O centro desse universo é uma grande
falsidade. O mensalão dos petistas, que condenou Dirceu e Genoíno, foi julgado
pelo Supremo em clima de maior escândalo da história, definição que, por si só,
já pedia, proporcionalmente, a maior condenação da história.
Já o mensalão do PSDB-MG escapou pela
porta dos fundos. Ninguém sabe quando será julgado, ninguém saberá quando algum
nome mais importante for absolvido em instancias inferiores, ninguém terá ideia
do destino de todos. Bobagem ficar de plantão a espera do resultado final. Esse
barco não vai chegar.
O caminho foi diferente, a defesa
terá mais chances e oportunidades. Não dá para corrigir.
O PSDB-MG passará, no mínimo, por
duas instâncias. Quem sabe, algum condenado ainda poderá bater às portas do STF
– daqui a alguns anos. Bons advogados conseguem tanta coisa, nós
sabemos…
Não há reparação possível. São rios
que seguiram cursos diferentes, para nunca mais se encontrar.
Partindo desse julgamento desigual,
eu fico espantado que Dirceu tenha sido condenado quando os dois principais
casos concretos – ou provas – contra ele se mostraram muito
fracas.
Ponto alto da denúncia de Roberto
Jefferson contra Dirceu, a acusação de que Marcos Valério fez uma viagem a
Portugal para arrumar dinheiro para o PTB e o PT se mostrou uma história
errada. Lobista de múltiplas atividades, Valério viajou a serviço de outro
cliente, aquele banqueiro da privatização tucana que ficou de fora do
julgamento. Ricardo Lewandoswski explicou isso e não foi
contestado.
Outra grande acusação, destinada a
sustentar que Dirceu operava o esquema como se fosse o dono de uma rede de
fantoches, revelou-se muito mais complicada do que parecia. Estou falando da
denúncia de que, num jantar em Belo Horizonte, Dirceu teria se aliado a Katia
Rebelo, a dona do Banco Rural, para lhe dar a “vantagem indevida” pelos
serviços prestados no mensalão.
A tese é que Dirceu entrou em ação
para ajudar a banqueira a ganhar uma bolada – no início falava-se em bilhões –
com o levantamento da intervenção do Banco Central no Banco Mercantil de
Pernambuco. O primeiro problema é que nenhuma testemunha presente ao encontro
diz que eles sequer tocaram no assunto.
Mas é claro que você não precisa
acreditar nisso. Pode achar que eles combinaram tudo para mentir junto. Por que
não?
Mas a sequencia da história não
ajuda. Valério foi 17 vezes ao BC e ouviu 17 recusas. A intervenção no Banco
Mercantil só foi levantada dez anos depois, quando todos estavam longe do
governo. Rendeu uma ninharia em comparação com o que foi
anunciado.
De duas uma: ou a denuncia de que
Dirceu trabalhava para ajudar o Banco Rural a recuperar o Mercantil era falsa.
Ou a denuncia é verdadeira e ele não tinha o controle total sobre as
coisas.
Ou não havia domínio. Ou não havia
fato.
Aonde estão os super poderes de
Dirceu?
Estão na “conversa”, dizem. Estão no
“eu sabia”, no “só pode ser”, no “não é crível” e assim por diante. Dirceu
conversava e encontrava todo mundo, asseguram os juízes. Mas como seria possível
coordenar um governo sem falar nem conversar? Sem sentar-se com cada um daqueles
personagens, articular, sugerir, dirigir. Conversar seria prova de alguma
coisa?
Posso até imaginar coisas. Posso “ter
certeza.” Posso até rir de quem sustenta o contrário e achar que está zombando
da minha inteligência.
Mas para condenar, diz a professora
Margarida Lacombe, na GloboNews, é preciso de provas robustas, consistentes.
Ainda vivemos no tempo em que a acusação deve apresentar provas de
culpa.
Estamos privando a liberdade das
pessoas, o seu direito de andar na rua, ver os amigos, e, acima de tudo, dizer o
que pensa e lutar pelas próprias ideias.
Estamos sob um regime democrático,
onde a liberdade – convém não esquecer – é um valor supremo. Podemos dispor
dela, assim, a partir do razoável?
Genoíno também foi condenado pelo que
não é crível, pelo não pode ser, pelo nós não somos bobos. Ainda ouviu uma
espécie de sermão. Disseram que foi um grande cara na luta contra a ditadura mas
agora teve um problema no meio da estrada, um desvio, logo isso
passa.
Julgaram a pessoa, seu comportamento.
E ouviu a sentença de que seu caráter apresentou falhas.
Na falta de provas, as garantias
individuais, a presunção da inocência, foram diminuídas, em favor da teoria que
permite condenar com base no que é “plausível”, no que é “crível” e outras
palavras carregadas de subjetividade, de visão
Não custa lembrar – só para não fazer
o papel de bobo — que se deixou de lado o empresário das privatizações tucanas
que foi um dos primeiros a contribuir para o esquema, um dos últimos a aparecer
e, mais uma vez, um dos primeiros a sair.
Já perdemos a conta de casos
arquivados no Supremo por falta de provas, ou por violação de direitos
individuais, ou lá o que for, numa sequência de impunidades que –
involuntariamente — ajudou a formar o clima do “vai ou racha” que levou muitos
cidadãos honestos e indignados a aprovar o que se passou no julgamento, de olhos
fechados.
Juizes do STF emparedaram o governo
Lula, ainda no exercício do cargo, em função de uma denuncia – absurdamente
falsa – de que um de seus ministros fora grampeado, em conversa com o notável
senador Demóstenes Torres, aquele campeão da moralidade que tinha o celular do
bicheiro, presentes do bicheiro, avião do bicheiro…o mesmo bicheiro que ajudou a
fazer várias denuncias contra o governo Lula, inclusive o vídeo dos Correios que
é visto como o começo do mensalão.
Prova de humildade: os ministros do
STF também pode se enganar. Apontado como suspeito pelo caso, o delegado Paulo
Lacerda perdeu o posto. Dois anos depois, a Polícia Federal divulgou que,
conforme seu inquérito, não havia grampo algum. Nada.
A condenação contra José Genoíno e
José Dirceu sustenta-se, na verdade, pelo julgamento de caráter dos envolvidos.
Achamos que eles erraram. Não há fatos, não há provas. Mas cometeram
“desvios”.
Aí, nesse terreno de alta
subjetividade, é que a condenação passa a fazer sentido. Os poucos fatos se
juntam a uma concepção anterior e formam uma culpa.
A base deste raciocínio é a visão
criminalizada de determinada política e determinados
políticos.
(Sim. De uma vez por todas: não são
todos os políticos. O mensalão PSDB-MG lembra, mais uma vez, que se fez uma
distinção entre uns e outros.)
Os ministros se convenceram de que
“sabem” que o governo “comprava apoio” no Congresso. Não contestam sequer a
visão do procurador geral, que chega a falar em sistema de “suborno”, palavra
tão forte, tão crua, que se evita empregar por revelar o absurdo de toda
teoria.
Suborno, mesmo, sabemos de poucos e
não envolvem o mensalão. Foram cometidos em 1998, na compra de votos para a
reeleição. Mas pode ter havido, sim, casos de suborno.
Mas é preciso demonstrar, mesmo que
não seja preciso uma conversa grampeada, como Fernando Rodrigues revelou em
1998.
Nesta visão, confunde-se
compensações naturais da política universal com atitudes criminosas, como
crimes comuns. Quer-se mostrar aos políticos como fazer politica –
adequadamente.
Chega-se ao absurdo. Deputados do PT,
que nada fariam para prejudicar um governo que só conseguiu chegar ao Planalto
na quarta tentativa, são acusados de terem vendido seu apoio em troca de
dinheiro. Não há debate, não há convencimento, não há avaliação de conjuntura.
Não há política. Não há democracia – onde as pessoas fazem alianças, mudam de
ideia, modificam prioridades. Como certas decisões de governo, como a reforma da
Previdência, não pudessem ser modificadas, por motivos corretos ou errados, em
nome do esforço para atravessar aquele ano terrível de 2003, sem crescimento,
desemprego alto, pressão de todo lado.
A formula é tudo por dinheiro é nome
de programa de TV, não de partido político.
Imagino se, por hipótese, a Carta ao
Povo Brasileiro, que contrariou todos os programas que o PT já possuiu desde o
encontro de fundação, no Colégio Sion, tivesse de ser aprovada pelo
Congresso.
Tenho outra dúvida. Se este é um
esquema criminoso, sem relação com a política, alguém poderia nos apresentar –
entre os deputados, senadores, assessores incriminados – um caso de
enriquecimento. Pelo menos um, por favor. Porque a diferença, elementar, para
mim, é essa.
Dinheiro da política vai para a
eleição, para a campanha, para pagar dívidas. Coisas, aliás, que a denuncia de
Antônio Fernando de Souza, o primeiro procurador do caso,
reconhece.
Decepção. Não há este caso. Nenhum
político ficou rico com o mensalão. Se ficou, o que é possível, não se
provou.
Claro que o Delúbio, deslumbrado,
fumava charutos cubanos. Claro que Silvinho Pereira ganhou um Land Rover. A
ex-mulher de Zé Dirceu, separada há anos, levou um apartamento e conseguiu um
emprego.
Mas é disso que estamos falando? É
este o “maior escândalo da história”?
Os desvios de dinheiro público,
comprovados, são uma denúncia séria e grave. Deve ser apurada e os responsáveis,
punidos.
Mas não sabemos sequer quanto o
mensalão movimentou. Dois ministros conversaram sobre isso, ontem, e um deles
concluiu que era coisa de R$ 150 milhões. Queria entender por que se chegou a
este número.
Conforme a CPMI dos Correios, é muito
mais. Só a Telemig – daquele empresário que ficou esquecido – compareceu com
maravilhosos R$ 122 milhões, sendo razoável imaginar que, pelo estado de origem,
seu destino tenha sido o modelo PSDB-MG. Mas o Visanet entregou R$ 92,1 milhões,
diz a CPMI. A Usiminas – olha como é grande o braço mineiro – mandou R$ 32
milhões para as agências de Marcos Valério. Mas é bom advertir: isso está na
CPMI, não é prova, não é condenação.
A principal testemunha, Roberto
Jefferson, acusou, voltou atrás, acusou de novo… Fez o jogo que podia e que lhe
convinha a cada momento. Disse até que o mensalão era uma criação mental. (Está
lá, no depoimento à Polícia Federal).
Eu posso pinçar a frase que quiser e
construir uma teoria. Você pode pinçar outra frase e construir outra teoria.
Jefferson foi uma grande “obra aberta” do caso.
O nome disso é falta de
provas.
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