Da Istoé
Paulo Moreira Leite
A entrevista de Bill Gates a Raul Juste Lores, na Folha de S.Paulo,
deverá inspirar um imenso cortejo de bajuladores brasileiros, que logo
irão apontar o primeiro bilionário da internet como exemplo a ser
seguido.
Não faltam pessoas prontas para
elogiar os muito ricos e bem sucedidos por qualquer coisa – de
preferência estrangeiros, que alimentam o conhecido complexo de
vira-latas dos críticos de nossa vidinha social.
Bill
Gates conta na entrevista que já doou grande parte de sua fortuna
pessoal a entidades filantrópicas e agora pretende convencer seus pares
do mundo inteiro a fazer a mesma coisa.
Sua
ideia é que o pessoal que representa 1% (ou menos) da população
mundial, mas controla 99% (ou mais) da riqueza, tenha bom coração e
entregue 95% para a caridade.
Não custa reconhecer que, em matéria de utopias, já tivemos ideias mais ousadas.
Warren
Buffet, bilionário do mesmo patamar que Bill Gates, foi mais coerente
quando disse que os ricos pagam pouco imposto – e havia chegado a hora
de o Estado cobrar mais.
Buffet também faz doações para instituições de caridade, mas reconhece a diferença entre uma coisa e outra.
A
cobrança do imposto dos ricos, eliminado há mais de 30 anos nos EUA
pelos republicanos, sempre foi uma forma de a sociedade cobrar dos
bilionários uma retribuição pelos recursos acumulados.
Um instrumento da República para contribuir para a igualdade entre os cidadãos.
Isso
porque nenhuma fortuna é obra de um indivíduo isolado. É um produto
social, onde entram consumidores, investidores, clientes – e todo um
conhecimento acumulado ao longo da história, que é patrimônio da
humanidade.
No
caso específico das fortunas da era tecnológica, não custa recordar que
as inovações vieram acompanhadas de práticas monopolistas condenáveis e
mesmo iniciativas para impedir o crescimento de concorrentes que foram
parar na Justiça. Basta lembrar a disputa entre o sistema Windows e o
Linux, não é mesmo? Ou entre o Internet Explorer e seus adversários.
Num artigo do início da década passada, o New York Times definia a internet como uma colônia dos Estados Unidos.
Pioneiros
da internet argumentam que essas práticas ajudaram a tornar o acesso à
rede de computadores mais caro, mais difícil e mais exclusivo.
Escrevo
isso para dizer que as fortunas contemporâneas não são o capítulo final
de um conto de fadas envolvendo um empreendedor com grandes ideias e
muita perseverança num mundo de preguiçosos, decrépitos e pouco
inteligentes. Há iniciativa, pode até haver genialidade, mas há luta,
confronto, jogo de interesses e esquemas de poder.
Basta
doar uma moeda de 1 real num semáforo para perceber uma coisa. Além do
benefício imediato que este gesto pode causar – inegável em várias
situações, pernicioso em outras –, essa moeda representa uma
transferência de poder. Ainda que por uns minutos, aquele sujeito que
recebeu o donativo deve gratidão ao doador. Irá lhe dizer palavras
reverentes, respeitosas.
É
por isso que há mais de 2 000 anos a Igreja Católica tornou-se a maior
instituição de caridade que se conhece. Não vamos negar os benefícios
que essa atividade da Igreja trouxe para muitas pessoas. Nem vamos
esquecer o papel de padres e bispos no combate a regimes tirânicos, como
a ditadura militar brasileira.
Mas
basta visitar os tesouros do Vaticano para entender uma outra mensagem.
Se distribuiu bondades, patrocinou artes e cultura, a Igreja também
acumulou riqueza e muito poder. Financiou guerras, organizou exércitos,
abençoou a colonização e fechou os olhos para tantos crimes em troca do
direito de catequizar as almas do Novo Mundo. Em 1964, estava lá –
abençoando tanques e baionetas.
Isso porque o principal compromisso de uma instituição desta natureza é com ela mesma, com sua preservação e expansão.
Com
todas as distâncias guardadas, é razoável observar que nossos
filantropos pertencem à mesma escola e filosofia. A questão é a
autopreservação.
Doadores
milionários são os patrocinadores das principais ONGs no mundo. Dirigem
sua atividade, escolhem seus dirigentes e definem, conforme suas opções
ideológicas, quais causas serão estimuladas e quais serão combatidas ou
marginalizadas.
Sua
fortuna serve, assim, como força política. Têm um poder de pressão
acima de qualquer cidadão comum. Identificadas – corretamente ou não – a
partir de causas generosas, que envolvem questões necessárias, têm uma
legitimidade única.
Fazem
uma atividade que, em outras situações seriam identificadas como
simples atuação de lobistas – mas agora são chamados de ativistas.
Entram em parlamentos, são recebidas por ministros, disputam verbas
públicas. Fazem política sem precisar comprar o debate público nem pedir
votos – porque seu sustento vem de fora, de donativos que os
bilionários adoram sustentar. Como são privadas, não precisam prestar
contas – nem fazer balanços políticos.
A
expansão das ONGs nas últimas décadas coincide com um desmanche do
Estado de Bem-Estar Social nos Estados Unidos e na Inglaterra, nos anos
de Ronald Thatcher e Margaret Reagan. O corte de verbas públicas –
inspirado pelo fim dos impostos para os mais ricos – foi tão grande que
criou novos bolsões de pobreza e abismos entre os cidadãos.
Serviços
que eram públicos se tornaram privados – ao alcance de quem poderia
pagar por eles – reservando-se poucas migalhas para quem estava nos
degraus inferiores da pirâmide. Os pensionistas da Previdência Pública
eram tratados como marajás e estigmatizados.
Nessa
situação de emergência social, era preciso chamar as boas almas (sim,
boas almas, porque elas existem) da classe média para olhar pelo destino
dos pobres.
Foi neste período que as ONGs se expandiram, ganharam recursos e adeptos, como a face generosa de um processo perverso.
Empresas “generosas” contratavam funcionários que eram obrigados a prestar serviços “voluntários” em suas horas de folga.
Cidadãos
de alma caridosa foram convencidos de que “mais vale acender uma vela
na noite do que maldizer a escuridão” – e nunca mais se perguntaram a
origem de tudo aquilo.
Dá para entender que ninguém é bonzinho nesta história, não é mesmo?
Blog do Luis Nassif
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