Por Frederico Füllgraf, especial para Jornal GGN
Na segunda-feira, 27 de janeiro, a Corte
Internacional de Justiça (CIJ) de Haia promulgou sentença que redesenha
os limites marítimos entre o Chile e o Peru. O veredicto contempla
grande parte da reivindicação marítima do Peru, cuja ofensiva
diplomática e jurídica dos últimos seis meses lhe confere vantagens face
ao vizinho andino. Nota digna de atenção entre os apreciadores de
destilados, é a vitória peruana amealhada com o patenteamento e
reconhecimento internacional do Pisco, famosa aguardente der uva, como
produto genuinamente peruano desde o séc. XVI. O país andino, porém,
reclama mais: quer a devolução integral dos preciosos livros saqueados
pelo Chile na Biblioteca de Lima, ao final da Guerra do Salitre, em
1883.
Foi tenso o clima que antecedeu o
pronunciamento da Corte Internacional de Justiça de Haia (CIJ) sobre a
demanda marítima do Peru, protocolada em Haia, em 2006, depois de
amargar décadas de negativas chilenas em sentar à mesa de negociações. A
percepção chilena generalizada era de que a sentença não lhe seria
favorável, na véspera, jornais peruanos e chilenos, nacionalistas,
trocaram acusações e tropas dos dois países acantonaram-se em ambos os
lados da fronteira.(leia também “Chile x Peru, um pedaço de mar e a perigosa guerra fria”, Jornal GGN,17/01/2014).
Porém, como era esperado, o veredicto da
CIJ foi salomônico, reconhecendo a justeza da demanda peruana, mas não
deixando de valorizar alguns argumentos chilenos.
Como efeito prático, o Peru ganhou um
"triângulo exterior" da zona marítima em disputa, que desde a Guerra do
Salitre (1879-1883) era de jurisdição chilena, com seu vértice
localizado sobre o ponto que estabelece 80 milhas náuticas a partir da
terra firme, e que lhe contempla aprox. 50.000 km2 de mar. O Peru
arrebatou 70% do que aspirava, mais não conseguiu, porque a Corte
validou o argumento chileno, segundo o qual os acordos pesqueiros de
1952 e 1954 assinados por ambos os países supõem um tratado fronteiriço
tácito, argumento que reforçou com a noção chilena de uma linha paralela
à Linha do Equador, identificada como "Hito [Ponto] 1”.
O chileno Jorge Contesse, professor de
Direito Internacional da Universidade Rutgers-Newark (EEUUA), define a
medida como "justiça contextualizada", isto é: a Corte deliberou segundo
a evolução do Direito Marítimo, entendendo que os acordos sobre as
atividades pesqueiras foram celebrados na década de 1950, mas que a
norma das 200 milhas como Zona Econômica Exclusiva foi adotada em 1982,
motivo pelo qual não seria justo retroceder à década de 1950, como
desejava o Chile.
Nas ruas da cidade de Tacna, no Peru, a
população celebrou a decisão da CIJ com ruidoso carnaval nacionalista,
atitude que pode ser entendida como catarse coletiva em reação às perdas
sofridas com a Guerra do Salitre, que custou ao Peru as riquíssimas
Províncias de Tacna e Arica, com 58.000 Km2. Somadas à Puna de Atacama –
com 75.000 Km2, arrebatada à Bolívia - o Chile incorporou ao seu
território as maiores jazidas de salitre e de cobre dos Andes, que
definiram o perfil de sua economia minero-extrativista, predominante até
os dias de hoje.
Isolamento chileno
O veredicto de Haia volta a confrontar o
Chile com o desfecho mal resolvido da Guerra do Salitre, que também
privou a Bolívia de 400 quilômetros de seu litoral. Único país do
Continente sem acesso ao mar (em comparação, o Paraguai dispõe do Rio da
Prata e do Porto de Paranaguá), o encurralamento mediterrâneo da
Bolívia é considerado uma aberração pela maioria dos historiadores e
mais uma vez conduzirá o Chile ao Tribunal de Haia, conforme notificação
anunciada em março de 2011 pelo presidente Evo Morales.
Segundo o analista Pablo Jofré, da Rádio
Universidade do Chile, a sentença de Haia sobre os direitos marítimos
do Peru significou um duro golpe no modo chileno de encarar sua política
exterior, fazendo vistas grossas à boa vizinhança e isolando-se no
Continente.
Para o jornalista chileno, a diplomacia
de seu país amarga “um antes e um depois do veredicto da CIJ”, pois
obriga o Chile a encarar uma nova realidade continental, que tanto a
ditadura Pinochet quanto os governos da Concertación democrática se
obstinaram em ignorar.
Como ex-ministra da Defesa, que
impulsionou a modernização das FFAA, e ex-presidente (2006-2010) chilena
que assistiu impávida ao protocolo da ação judicial peruana durante
seu mandato, agora Michelle Bachelet pretende fazer diferente,
impulsionando uma integração continental que atribua ao Chile um rosto
de país latino-americano, que suas elites extrativistas e retrógradas
teimosamente rejeitaram, enxergando-se com soberba no espelho dos
valores anglo-americanos e sua percepção do mundo.
“O Pisco é Nosso!”
Embora iniciador da Aliança para o
Pacífico, outra foi a agenda diplomática do Peru, país de tradicionais e
fortes laços políticos com a Argentina e o Brasil – tão vigorosos que,
em aberta solidariedade à Argentina, durante a Guerra das Malvinas
(1982) aviões e pilotos peruanos envolveram-se em ações militares contra
a Inglaterra.
Tendo superado a conturbada era
Fujimori, autoritária e corrupta, durante as administrações Alan García e
Ollanta Humala, com taxas em torno de 6,0%, o Peru emerge como a
Economia que mais cresce na América Latina, desbancando o vizinho Chile,
citado pela cartilha neoliberal como o “aluno mais aplicado dos
mercados”.
Fortalecido internamente, mediante apoio
popular à versão limenha do capitalismo social lulista, o Peru vem
apostando não apenas em sua capacidade de defesa militar, mas também de
um patrimônio etílico e cultural, saboreado internacionalmente: a
aguardente Pisco.
Foi assim que, após granjear o apoio
contratual de dezenas de países mundo afora, em novembro de 2013, a
Comissão Europeia formalizou o registro da indicação geográfica “Pisco”
como toponímia peruana - que remete a uma região e porto peruanos
localizados a 250 quilômetros ao sul de Lima desde a época pré-hispânica
- deste modo atribuindo “proteção e comercialização adequadas no
mercado da União Europeia”, da aguadente peruana homônima, segundo
definição do governo Ollanta Humala
A medida visou ao Chile, segundo
produtor e concorrente do Peru. Fernando Herrera, gerente da Associação
de Produtores de Pisco do Chile, que vinha tentando apossar-se do nome,
apressou-se em garantir que a denominação de origen do pisco "é
binacional", o que é apenas meia-verdade. O Chile poderá continuar
chamando sua cachaça de “Pisco”, mas será obrigado a rotular suas
etiquetas com indicação da procedência – norma adotada mundialmente para
proteger os produtores do genuíno whisky escocês, cujo selo de
procedência “scotch”, ou mais precisamente, “Higlands”, ao consumidor
basta como indicação de genuidade e qualidade.
Os parreirais chilenos começaram a ser
plantados de forma sistemática apenas após a Guerra do Salitre, antes
dela, o vizinho do Peru era abastecido por massivas remessas de
aguardente a partir do porto peruano de Pisco.
Para provar seus direitos autorais e de
procedência, o Peru mobilizou historiadores, consultores e peritos
nacionais e internacionais em Propriedade Intelectual, submetendo às
autoridades europeias desde dicionários etimológicos que atestam a
origem Quechua da palavra “pisco” - iru takaq pishqu, nome dado
ao pássaro carpinteiro, abundante na região – até páginas anedóticas de
seus anais de história, como ilustra um episódio envolvendo o
famigerado pirata Francis Drake.
No início de 1580, Drake atacou vilas do
litoral peruano, desembarcando na localidade de Pisco, onde fez
prisioneiros tomados como reféns rehenes, por cuja libertação exigiu um
resgate de 80,000 Pesos, considerada enorme fortuna à época. Mas a
população de Pisco conseguiu juntar apenas 24,000 Pesos e por isso,
esperta, fez uma proposta ao cortsário britânico: pagar o saldo devedor
com 300 barricas de aguardente artesanal nativa.
O pirata aceitou sem pestanejar, seus homens arrebataram o butim e se fizeram ao mar.
Blog do Luis Nassif
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