quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O efeito Pisco: a disputa diplomática entre Peru e Chile

Por Frederico Füllgraf,  especial para Jornal GGN

Na segunda-feira, 27 de janeiro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) de Haia promulgou sentença que redesenha os limites marítimos entre o Chile e o Peru. O veredicto contempla grande parte da reivindicação marítima do Peru, cuja ofensiva diplomática e jurídica dos últimos seis meses lhe confere vantagens face ao vizinho andino. Nota digna de atenção entre os apreciadores de destilados, é a vitória peruana amealhada com o patenteamento e reconhecimento internacional do Pisco, famosa aguardente der uva, como produto genuinamente peruano desde o séc. XVI. O país andino, porém, reclama mais: quer a devolução integral dos preciosos livros saqueados pelo Chile na Biblioteca de Lima, ao final da Guerra do Salitre, em 1883.


Foi tenso o clima que antecedeu o pronunciamento da Corte Internacional de Justiça de Haia (CIJ) sobre a demanda marítima do Peru, protocolada em Haia, em 2006, depois de amargar décadas de negativas chilenas em sentar à mesa de negociações. A percepção chilena generalizada era de que a sentença não lhe seria favorável, na véspera, jornais peruanos e chilenos, nacionalistas, trocaram acusações e tropas dos dois países acantonaram-se em ambos os lados da fronteira.(leia também “Chile x Peru, um pedaço de mar e a perigosa guerra fria”, Jornal GGN,17/01/2014).


Porém, como era esperado, o veredicto da CIJ foi salomônico, reconhecendo a justeza da demanda peruana, mas não deixando de valorizar alguns argumentos chilenos.


Como efeito prático, o Peru ganhou um "triângulo exterior" da zona marítima em disputa, que desde a Guerra do Salitre (1879-1883) era de jurisdição chilena, com seu vértice localizado sobre o ponto que estabelece 80 milhas náuticas a partir da terra firme, e que lhe contempla aprox. 50.000 km2 de mar. O Peru arrebatou 70% do que aspirava, mais não conseguiu, porque a Corte validou o argumento chileno, segundo o qual os acordos pesqueiros de 1952 e 1954 assinados por ambos os países supõem um tratado fronteiriço tácito, argumento que reforçou com a noção chilena de uma linha paralela à Linha do Equador, identificada como "Hito [Ponto] 1”.


O chileno Jorge Contesse, professor de Direito Internacional da Universidade Rutgers-Newark (EEUUA), define a medida como "justiça contextualizada", isto é: a Corte deliberou segundo a evolução do Direito Marítimo, entendendo que os acordos sobre as atividades pesqueiras foram celebrados na década de 1950, mas que a norma das 200 milhas como Zona Econômica Exclusiva foi adotada em 1982, motivo pelo qual não seria justo retroceder à década de 1950, como desejava o Chile.


Nas ruas da cidade de Tacna, no Peru, a população celebrou a decisão da CIJ com ruidoso carnaval nacionalista, atitude que pode ser entendida como catarse coletiva em reação às perdas sofridas com a Guerra do Salitre, que custou ao Peru as riquíssimas Províncias de Tacna e Arica, com  58.000 Km2. Somadas à Puna de Atacama – com 75.000 Km2, arrebatada à Bolívia - o Chile incorporou ao seu território as maiores jazidas de salitre e de cobre dos Andes, que definiram o perfil de sua economia minero-extrativista, predominante até os dias de hoje.


Isolamento chileno

O veredicto de Haia volta a confrontar o Chile com o desfecho mal resolvido da Guerra do Salitre, que também privou a Bolívia de 400 quilômetros de seu litoral. Único país do Continente sem acesso ao mar (em comparação, o Paraguai dispõe do Rio da Prata e do Porto de Paranaguá), o encurralamento mediterrâneo da Bolívia é considerado uma aberração pela maioria dos historiadores e mais uma vez conduzirá o Chile ao Tribunal de Haia, conforme notificação anunciada em março de 2011 pelo presidente Evo Morales.


Segundo o analista Pablo Jofré, da Rádio Universidade do Chile, a sentença de Haia sobre os direitos marítimos do Peru significou um duro golpe no modo chileno de encarar sua política exterior, fazendo vistas grossas à boa vizinhança e isolando-se no Continente.


Para o jornalista chileno, a diplomacia de seu país amarga “um antes e um depois do veredicto da CIJ”, pois obriga o Chile a encarar uma nova realidade continental, que tanto a ditadura Pinochet quanto os governos da Concertación democrática se obstinaram em ignorar.


Como ex-ministra da Defesa, que impulsionou a modernização das FFAA, e ex-presidente (2006-2010) chilena que assistiu impávida ao protocolo da ação judicial peruana durante  seu mandato, agora Michelle Bachelet pretende fazer diferente, impulsionando uma integração continental que atribua ao Chile um rosto de país latino-americano, que suas elites extrativistas e retrógradas teimosamente rejeitaram, enxergando-se com soberba  no espelho dos valores anglo-americanos e sua percepção do mundo.


“O Pisco é Nosso!”

Embora iniciador da Aliança para o Pacífico, outra foi a agenda diplomática do Peru, país de tradicionais e fortes laços políticos com a Argentina e o Brasil – tão vigorosos que, em aberta solidariedade à Argentina, durante a Guerra das Malvinas (1982) aviões e pilotos peruanos envolveram-se em ações militares contra a Inglaterra.
Tendo superado a conturbada era Fujimori, autoritária e corrupta, durante as administrações Alan García e Ollanta Humala, com taxas em torno de 6,0%, o Peru emerge como a Economia que mais cresce na América Latina, desbancando o vizinho Chile, citado pela cartilha neoliberal como o “aluno mais aplicado dos mercados”.

Fortalecido internamente, mediante apoio popular à versão limenha do capitalismo social lulista, o Peru vem apostando não apenas em sua capacidade de defesa militar, mas também de um patrimônio etílico e cultural, saboreado internacionalmente: a aguardente Pisco.


Foi assim que, após granjear o apoio contratual de dezenas de países mundo afora, em novembro de 2013, a Comissão Europeia formalizou o registro da indicação geográfica “Pisco” como toponímia peruana - que remete a uma região e porto peruanos localizados a 250 quilômetros ao sul de Lima desde a época pré-hispânica - deste modo atribuindo “proteção e comercialização adequadas no mercado da União Europeia”, da aguadente peruana homônima, segundo definição do governo Ollanta Humala


A medida visou ao Chile, segundo produtor e concorrente do Peru. Fernando Herrera, gerente da Associação de Produtores de Pisco do Chile, que vinha tentando apossar-se do nome, apressou-se em garantir que a denominação de origen do pisco "é binacional", o que é apenas meia-verdade. O Chile poderá continuar chamando sua cachaça de “Pisco”, mas será obrigado a rotular suas etiquetas com indicação da procedência – norma adotada mundialmente para proteger os produtores do genuíno whisky escocês, cujo selo de procedência “scotch”, ou mais precisamente, “Higlands”, ao consumidor basta como indicação de genuidade e qualidade.
Os parreirais chilenos começaram a ser plantados de forma sistemática apenas após a Guerra do Salitre, antes dela, o vizinho do Peru era abastecido por massivas remessas de aguardente a partir do porto peruano de Pisco.


Para provar seus direitos autorais e de procedência, o Peru mobilizou historiadores, consultores e peritos nacionais e internacionais em Propriedade Intelectual, submetendo às autoridades europeias desde dicionários etimológicos que atestam a origem Quechua da palavra “pisco” - iru takaq pishqu, nome dado ao pássaro carpinteiro, abundante na região – até páginas anedóticas de seus anais de história, como ilustra um episódio envolvendo o famigerado pirata Francis Drake.


No início de 1580, Drake atacou vilas do litoral peruano, desembarcando na localidade de Pisco, onde fez prisioneiros tomados como reféns rehenes, por cuja libertação exigiu um resgate de 80,000 Pesos, considerada enorme fortuna à época. Mas a população de Pisco conseguiu juntar apenas 24,000 Pesos e por isso, esperta, fez uma proposta ao cortsário britânico: pagar o saldo devedor com 300 barricas de aguardente artesanal nativa.
O pirata aceitou sem pestanejar, seus homens arrebataram o butim e se fizeram ao mar.



Blog do Luis Nassif

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