Num mundo de
840 milhões de famintos, as despesas militares dos países superam US$
1,7 trilhão em três anos, o equivalente a US$ 260 dólares por habitante
do planeta
por Renato Brandão
publicado
19/01/2014 14:54
Tom Weber/ MILpictures/getty images
Num
mundo de 840 milhões de famintos, as despesas militares dos países
superam US$ 1,7 trilhão em três anos, o equivalente a US$ 260 dólares
por habitante do planeta
Há pelo menos 70 mil anos o Homo sapiens já era dotado da capacidade
de produzir armas. Junto com a capacidade de desenvolver a linguagem e
dominar o fogo, a construção de instrumentos acompanhou a espécie humana
nas tarefas de conquistar e se consolidar por diversas regiões do
planeta. Transformações posteriores, em especial após os períodos
Paleolítico e Neolítico, abririam uma nova etapa da evolução do homem,
culminando com a formação de pioneiras organizações sociais e o
surgimento da escrita, colocando fim à Pré-história. Homens e armas
evoluiram pela Antiguidade até os dias atuais, em uma história de mais
de 5 mil anos que vai do uso de metal derretido para fazer espadas,
flechas e lanças, até o domínio biológico, químico e nuclear para
construir armas de destruição em massa capazes de aniquilar o planeta em
poucos minutos e por várias vezes.
Depois da Revolução Industrial surgiu o que se conhece hoje como
setor aeroespacial, defesa e segurança, um dos mais lucrativos e
poderosos do mundo. Envolve empresários, políticos, militares, agentes
de inteligência e negociantes de armas – e não é raro uma mesma pessoa
se mover entre essas funções; a indústria bélica é repleta de poder e
segredo, difícil de ser estudada e fiscalizada.
Estimativas sobre o setor normalmente são imprecisas e incompletas,
especialmente porque países e empresas não revelam detalhes sobre o
negócio, por sigilo militar ou pelo caráter das transações. As poucas
informações divulgadas dão uma ideia da força da indústria de defesa. O
comércio internacional de armas convencionais movimenta cerca de US$ 80
bilhões por ano – embora essa cifra deva ser bem maior, uma vez que
alguns dos principais exportadores, como a China e o Reino Unido, não
dão informação precisa sobre suas exportações.
Essa estimativa diz respeito a apenas uma parte dos negócios. Não
estão incluídas vendas para o mercado doméstico. “O comércio mundial de
armas representa apenas uma minoria do total da produção da indústria de
armamento no planeta. Embora empresas de países menores sejam mais
dependentes das exportações, a realidade é que a maioria das vendas
feitas por grandes fabricantes dos Estados Unidos e demais potências é
para dentro do país”, explica Samuel Perlo-Freeman, do Instituto
Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo, Suécia (Sipri, na sigla
em inglês).
Segundo Perlo-Freeman, esses grandes contratos locais entre
indústria e Estado englobam não apenas venda de equipamentos, mas também
prestação de serviços militares. “Por isso, os valores de vendas totais
de equipamentos e serviços das empresas são muito mais elevados do que
quaisquer estimativas para o comércio mundial de armas”, completa. De
acordo com um ranqueamento do Sipri, a soma das vendas e serviços
militares das 100 maiores empresas de armamento e equipamento bélico foi
de US$ 465,7 bilhões em 2011 – só as vendas das dez maiores corporações
globais chegaram a cerca de US$ 220 bilhões.
O Sipri estima que as despesas militares de todos os países
ultrapassaram US$ 1,7 trilhão, em média, nos últimos três anos – cerca
de US$ 260 dólares para cada habitante do planeta. Em vez de empregarem
mais investimento em saúde, educação, ciência e bem-estar, o
contribuinte está financiando gastos armamentistas atualmente superiores
à era final da Guerra Fria, encerrada há mais de duas décadas. “Mesmo
com a crise econômica internacional, os gastos estão em níveis
historicamente elevados, porque os governos prepararam pacotes de
estímulo e muitas empresas ainda estão trabalhando em encomendas
anteriores”, diz Perlo-Freeman.
De acordo com o instituto sueco, sete das dez maiores corporações do
setor de defesa ficam nos Estados Unidos – onde se beneficiam também do
comércio doméstico devido a uma legislação pouco rigorosa e à falta de
políticas de controle de armas. A forte pressão política exercida por
entidades de extrema-direita, como a Associação Nacional do Rifle (NRA,
na sigla em inglês), contamina as poucas iniciativas de se debater o
assunto. Mais influente instituição pró-armas estadunidense, a NRA gasta
fortunas em lobby sobre políticos e com uma propaganda paranoica contra
o desarmamento.
Influência perversa
Além de serem grandes clientes, os governos também concedem grandes
benefícios à indústria bélica – muitas vezes maiores do que a outros
setores produtivos. “Como a indústria está muito perto de vários níveis
de governo e também de políticos e partidos, essa relação íntima resulta
em decisões ruins e corrupção. Isso também significa que a indústria
tem uma influência desproporcional sobre a política de governo, não
apenas em relação a defesa e política externa, mas até mesmo sobre as
políticas econômica, social e ambiental”, avalia Andrew Feinstein,
ex-membro do Parlamento da África do Sul, autor de O Mundo das Sombras:
Por Dentro do Comércio de Armas Global e uma das mais respeitadas
autoridades mundiais no assunto. “Por causa dessa relação estreita, há
pessoas enriquecendo e que nunca enfrentam as consequências legais de
seus atos. O comércio de armas enfraquece a democracia responsável, o
Estado de direito e prejudica a própria segurança que se destina a
reforçar”, critica.
Nessa relação intricada entre políticos, militares e indústria, o
próprio Estado pode atuar ativamente em prol dos interesses da indústria
bélica. Contratos internacionais de venda, mesmo sendo negócios
particulares das corporações de defesa, só podem ser firmados em nível
governamental. Ou seja, para fazer uma venda a um país comprador, a
empresa precisa de autorização e assinatura de um representante do
governo de sua matriz. Não por acaso, os contratos militares recebem
tratamento de “segredo de segurança nacional”.
Um estudo da organização Transparência Internacional sugere que as
transações da indústria de defesa respondem por quase 40% de toda a
corrupção no âmbito do comércio mundial. “O comércio é tão corrupto
porque está estruturado para ser assim. Pouquíssimas pessoas tomam a
decisão sobre o que e de quem comprar. E tudo isso acontece em segredo.
Nos 13 anos que tenho investigado essas transações, nunca deparei com um
negócio que não tivesse algum elemento de ilegalidade”, lamenta o
ex-parlamentar sul-africano, que lista a corrupção por meio de suborno
aos tomadores de decisão, ações em empresas que se beneficiam de
acordos, presentes e viagens, entre outros agrados.
Um dos casos mais notórios de corrupção no comércio global de
armamentos foi o dos acordos de Al Yamamah. Avaliado em 40 bilhões de
libras (cerca de R$ 160 bilhões), o contrato de 20 anos formalizado
pelo governo do Reino Unido (liderado então por Margaret Thatcher) e
Arábia Saudita em meados da década de 1980 envolveu a troca direta de
aviões militares fabricados pela British Aerospace por petróleo saudita.
Quase duas décadas depois, investigações independentes revelaram que no
contrato a empresa pagou até 120 milhões de libras (aproximadamente R$
480 milhões) em propina para dirigentes sauditas. A denúncia foi
arquivada, já sob o governo Tony Blair (1997-2007), sob alegação de que
poderia levar à “destruição completa de uma relação estratégica vital e
à perda de milhares de empregos britânicos”.
Outra forma de corrupção está impregnada na estreita relação entre o
comércio formal e o mercado negro, onde os negócios são construídos por
intermediários – entre agentes, revendedores e traficantes, como o
ex-empresário russo Viktor Bout. Popularizado pela mídia ocidental como o
“senhor das armas”, esse ex-oficial da força aérea soviética fundou
companhias de carga aérea que prestaram serviços de transporte, de
alimentos a armas, para diversos clientes, do grupo extremista Taleban a
forças de paz das Nações Unidas e tropas dos Estados Unidos. “Viktor
Bout trabalhou para os Estados Unidos e para muitas grandes empresas de
defesa, ao mesmo tempo em que estava fornecendo armas ilegalmente em
várias zonas de conflito ou de embargos internacionais”, lembra
Feinstein.
Por US$ 60 milhões, uma empresa aérea de Bout foi
subcontratada para transportar munição e botas a soldados
norte-americanos entre 2003 e 2004, um momento crítico da segunda guerra
no Iraque. Anos depois, o russo foi preso, julgado e sentenciado pelos
Estados Unidos. “Ele só foi preso depois que ele não era mais útil,
porque, na verdade, o protegeram por muitos anos. Muitos negociantes de
armas são empregados por agências de inteligência, o que os torna
blindados e efetivamente acima da lei”, reforça.
Na tentativa de prevenir e erradicar o comércio ilícito, as Nações
Unidas e organizações de diretos humanos aguardam a entrada em vigor do
chamado Tratado do Comércio de Armas Convencionais (TCA). Primeiro
instrumento jurídico internacional para regular o comércio global
bélico, o tratado foi aprovado pela Assembleia Geral da Organização das
Nações Unidas (ONU) em abril do ano passado e aguarda a ratificação por
50 países para entrar em vigor. Embora muitas nações, entre as quais o
Brasil, se comprometam a ratificá-lo, até outubro somente sete países o
fizeram (Antígua e Barbuda, Costa Rica, Guiana, Islândia, Itália, México
e Nigéria).
Seus defensores argumentam que o tratado poderá impedir
que armas caiam em mãos de violadores de direitos humanos, organizações
terroristas e crime organizado. De acordo com o secretário-geral da ONU,
Ban Ki-moon, as normas fornecidas pelo TCA serão importantes para
avaliar os riscos de que as armas transferidas não serão usadas para
alimentar conflitos, armar organizações criminosas ou apoiar a violação
de normas do direito internacional humanitário. “Este é o único caminho
para uma maior responsabilização, abertura e transparência no comércio
de armas”, defende o líder.
Críticos ainda apontam falhas no tratado, como o fato de permitir que
os países exportadores continuem a fazer o seu próprio julgamento
subjetivo sobre vender ou não armas para um regime autoritário. “O TCA é
importante simbolicamente, mas é muito fraco, na prática, sem
mecanismos de execução significativos. Se é para fazer alguma diferença,
isso exigiria vontade política por parte de todos os governos, e isso é
altamente improvável, já que eles se beneficiam do comércio conforme
este se apresenta atualmente”, critica Andrew Feinstein, que acredita em
outro caminho para tornar o comércio de armas menos corrupto e mais
transparente, sugerindo que os países divulgassem o nome de
intermediários (identificando que eles são pagos e para qual finalidade
exata) e proibissem o uso de compensações econômicas em negócios de
armas. “Depois, empresas de defesa deveriam ser proibidas de fazer
doações a partidos políticos e campanhas eleitorais”, defende o
sul-africano.
Sexta maior taxa de homicídios do mundo
Oficialmente sem conflitos civis, emancipatórios, étnicos, raciais ou
religiosos, o Brasil tem de 16 a 17 milhões de armas em circulação
(sendo 6 milhões registradas) – média de uma arma para cada dúzia de
habitantes. A taxa de mortes por armas de fogo cresce substancialmente
desde a década de 1980 e mais de 1 milhão de brasileiros morreram
vítimas da violência armada nas últimas três décadas, de acordo com o
Mapa da Violência 2013, elaborado pelo pesquisador Júlio Jacobo
Waiselfisz.
Entre 1980 e 2000, o número de assassinatos saltou de cerca de 14 mil para quase 50 mil. Em algumas ocasiões, a taxa de homicídios brasileira ultrapassou diversas nações em guerra – quase 193 mil pessoas foram assassinadas no Brasil de 2004 a 2007, enquanto a soma das vítimas dos 12 maiores conflitos armados internacionais nesse período ficou em 169,5 mil.
Em outubro de 2005, o “não à proibição” obteve 60% dos votos num
referendo sobre o comércio de armas. O país ainda tem a sexta maior taxa
de homicídios do mundo, com 26 mortes por ano a cada mil habitantes. A
chamada “bancada da bala”, grupo de parlamentares que defendem os
interesses da indústria de armas no Congresso, é uma das mais coesas no
Parlamento. Distribui a parlamentares, jornalistas, associações e outros
formadores de opinião a cartilha Mitos e Fatos, a respeito da
legalidade do comércio de armas, entre outras táticas de convencimento.
Impacto de US$ 9,5 trilhões
Segundo um estudo divulgado pelo Instituto para a Economia e a Paz
(IEP), organização de pesquisa com sede em Sydney, Austrália, o impacto
da violência na economia internacional foi de US$ 9,5 trilhões em 2012,
valor equivalente a 11% de todas as riquezas produzidas no planeta e a
quase o dobro da produção total de alimentos. Há forte correlação entre o
impacto da crise financeira mundial de 2008 e a perda de paz no
planeta. “Os cortes nos serviços públicos e nas proteções sociais,
somados a um crescente desemprego, levaram ao aumento das manifestações
violentas, dos crimes violentos e da percepção da criminalidade em
muitos países”, diz o documento.
Muito dessa violência está vinculada às mais de 875 milhões de armas
leves que circulam no mundo. Parte dessas armas é obtida legalmente e
outra parcela, ilicitamente. Mais de 70% delas estão nas mãos da
população civil, estima o projeto Small Arms Survey, do Instituto
Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, na Suíça.Não é
por acaso que a maioria das mortes violentas no planeta ocorra em
países não afetados por conflitos armados. Das mais de 740 mil vítimas
da violência armada anualmente, 490 mil dizem respeito a homicídios,
segundo a Declaração de Genebra sobre Violência Armada e
Desenvolvimento.
Esse tipo de violência causa perdas de produtividade em até US$ 163
bilhões anuais somente em países sem conflitos declarados – boa parte
deles na América Latina (incluindo o Brasil), onde a violência está
fortemente vinculada a baixo desenvolvimento, alta desigualdade e
reduzidas oportunidades socioeconômicas.
Rede Brasil Atual
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