quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Império sem máscaras

Paulo Moreira Leite
 
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".

Atuação dos EUA é baseada na diplomacia, quando ela funciona, e na coerção, quando não há outro jeito

A descoberta de que o governo americano construiu um gigantesco sistema de espionagem do governo Dilma Rousseff é mais relevante do que se poderia imaginar.

Não se trata, obviamente, de só mais uma intervenção indevida do serviço secreto dos EUA no País.

Nas relações reais entre os povos e governos, tolera-se a presença de espiões e agentes secretos – desde que seu comportamento possa ser conhecido e até certo ponto monitorado por seus alvos. 

Todas as embaixadas possuem seus adidos, que realizam funções de espionagem e contatos militares.

Nada impede que um governo estrangeiro monte uma empresa de fachada num país onde tem interesses específicos, que irá permitir que faça um trabalho mais discreto de investigação e apuração de informações.

Isso não tem nada a ver com a descoberta revelada pelo Fantástico.

Trata-se de um ato agressivo, invasor, como política externa. Desrespeitoso, quando se considera as relações soberanas entre os povos. Inaceitável, quando se pensa no convívio equilibrado entre países. E absurdo, quando se recorda o conjunto de gentilezas que Washington tem oferecido ao governo brasileiro, culminando com a visita de Estado marcada para o próximo mês. Será possível a Dilma participar de um evento desses? Duvido.

Mas é, acima de tudo, um ato que confirma que, essencialmente, os Estados Unidos preferem manter relações com outros países a partir de situações de força, apoiadas em seu imenso poderio militar.

Sem os freios que encontrava no período da Guerra Fria, sem o respeito devido pela única instituição com legitimidade para dirimir diferenças entre os países, a ONU, o governo americano age como um império, se rearticula no que se pode chamar sem nostalgia esquerdista de uma nova política de colonização. Sua atuação é baseada no uso do convencimento diplomático, quando ele funciona, e da coerção, quando não há outro jeito. Mas é sempre uma política que começa e termina nos EUA, porque é fundada, em última análise, em seu aparato militar – sempre a postos para defender os interesses da maior economia do mundo.

Se a guerra de outros tempos travava-se em trincheiras, com garruchas e canhões de ferro, a guerra dos tempos modernos trava-se na informática e na informação. Permite convencer, operar e manipular -- pois é para isso, a manipulação, que servem informações reservadas e confidenciais.

Não há anjos nem querubins nas conversas diplomáticas, vamos combinar. Também não há idealismo.

Mas a força permite aos EUA impor uma política, o que é diferente. Seja no plano do meio ambiente, ou no controle das armas bélicas, e mesmo em políticas comerciais, o poder dissuasório americano permite aplicar a política do faça o que eu digo mas não o que eu faço.

Como tendência geral dos últimos anos, o poderio militar americano se acentuou, em vez de recolher-se. Em uma década, os Estados Unidos elevaram seus gastos militares em US$ 10,3 trilhões. Na Rússia, segundo país a elevar investimentos militares no período, o crescimento foi grande, mas muito mais modesto, de US$ 1 trilhão.

Sem adversários no plano militar, o gigante americano dá cada vez menos importância aos atos políticos, o que leva a um esvaziamento progressivo da Organização das Nações Unidas e a uma elevação da tensão internacional. Num levantamento do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, aprende-se que, entre 1945 e 1991, o governo dos EUA foi contrariado em 118 vetos no Conselho de Segurança. Nas duas décadas seguintes esse número foi reduzido várias vezes, para 29 vetos.

Capazes de enfrentar diferenças políticas razoáveis no plano interno, democratas e republicanos são irmãos gêmeos na defesa de uma política externa de natureza imperial. Isso explica a comunhão de ações entre Eisenhower e Kennedy, nos anos 1950-1960, numa intervenção que incluiu o ataque a Cuba; entre Johnson e Nixon, uma década depois, na entrada e saída do Vietnã; entre o Bush pai e Clinton, Bush filho e Barack Obama, mais tarde. 

Em países como o Egito, os EUA mantém um exército que tem vinculos maiores com Washington, que sustenta seus oficiais, do que com a própria sociedade local.
Se os países têm um interesse nacional, que se confunde com sua soberania, a elite que governa os EUA desde sua consolidação como potência número 1 do planeta combina interesse nacional com interesse imperial.

Não é simples coincidência que a alta espionagem sobre o governo Dilma seja contemporânea dos preparativos da nova operação de guerra da Casa Branca no Oriente Médio, desta vez na Síria. As guerras de conquista e domínio são atividade cotidiana de um império e tornaram-se uma prática cotidiana desde a invasão do Afeganistão, com o pretexto emocional-eleitoral de que era preciso responder ao ataque de 11 de Setembro; a guerra do Iraque, iniciada com a mentira fabricada de que o país possuía armas de destruição em massa; e a intervenção na Líbia para destituir Kadhafi.

Se os homens de leitura tiveram a oportunidade de conhecer um pensamento capaz de antecipar em alguma medida o espírito que dominam as ideias reinantes em Washington neste período, cabe reconhecer que seus fundamentos intelectuais se encontram no artigo “Choque de Civilizações,” de Samuel P. Huntington. Assumindo a visão de que “o eixo central da política mundial no futuro tende a ser o conflito entre o Ocidente e o resto”, o trabalho de Huntington irá servir de sustentação à política americana nas décadas seguintes, procurando dar legitimidade ideológica ao esforço da Casa Branca para defender a supremacia americana no planeta. Radicalizando o conflito entre nações a um duelo insuperável entre valores fundamentais e insuperáveis – daí o termo civilização – Huntington denuncia o “relativismo cultural” como prova de fraqueza num horizonte de ameaça e risco. Em sua visão, a emergência dos povos distantes e emancipados torna-se um perigo permanente ao que ele chama de Ocidente, universo que não inclui sequer todos os povos de religião cristã, pois Huntington registra, também, a existência de uma certa civilização “latino-americana.” 

Huntington afirma que os conflitos “entre as civilizações vão suplantar os conflitos de natureza ideológica” e define que “o Ocidente terá de manter o poderio econômico e militar necessário para proteger seus interesses diante dessas civilizações.”
 
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