dom, 06/04/2014 - 16:27
Fonte: BBC e Arquivos da Ditadura
Por JNS
Foi só quando o carro embicou no pátio do Arquivo Nacional, no
Centro do Rio, e o corre-corre da imprensa se amontoando ao seu redor
começou – "Chegou!" – que as dúvidas sobre se o coronel reformado Paulo
Malhães de fato apareceria se dissiparam.
Aos 76 anos, Malhães foi carregado do carro para a cadeira de rodas
que havia solicitado para comparecer à audiência pública da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), cercado de fotógrafos e cinegrafistas
O ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE) chegou
acompanhado da esposa, vestindo um terno bege e um óculos escuros de aro
dourado – que fez um repórter ao meu lado comentar que parecia o
ex-ditador líbio Muammar Khadafi.
Outra repórter arriscou puxar uma entrevista – "Você não se
arrepende?" – gritou, mas a cadeira de rodas era empurrada às pressas
para a sala de depoimento, que seria fechada à imprensa. Malhães nem
olhou para trás.
Desde que a CNV foi criada, em maio de 2012, apenas quatro agentes
da ditadura haviam aparecido nas convocações para depor em audiência
pública, e apenas dois haviam confirmado a prática, ou a existência, de
tortura.
Malhães se tornou o quinto a depor e o primeiro a admitir a participação em tantos crimes.
Em depoimento que durou mais de duas horas, ele confirmou que
torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos na ditadura
militar.
Casa da Morte
Na audiência pública, a CNV apresentou o que se sabe sobre a Casa
da Morte de Petrópolis, um centro clandestino mantido pelo regime
militar no início da década de 1970.
Malhães era um dos agentes ativos no centro de tortura – cujo nome
vem da fama de que ninguém saía dali vivo. A única sobrevivente é Inês
Etienne Romeu, presa e torturada por seis meses em 1971.
Foi graças à sua memória e perseverança que a existência da casa
veio à tona, em 1981. Ela tem graves sequelas neurológicas desde que foi
agredida em casa em 2003, em um crime que nunca se esclareceu. Foi
aplaudida como uma heroína na audiência na parte da manhã.
De tarde o público se dissipara. O coronel concordara em depor,
desde que fosse a portas fechadas. Mas logo no início da sessão,
surpreendeu a todos mudando de ideia e admitindo a entrada da imprensa. A
primeira frase que ouvi ao entrar foi: "Como faço com tudo na vida, eu
dei o melhor de mim naquela função."
Contou ter estudado documentos dos serviços secretos britânico,
americano e israelense no início da carreira. Hoje, diz ser um estudioso
de orquídeas. "Cheguei a fazer tortura quando comecei. Depois, evoluí",
disse a princípio. Deu a entender que evolução fora passar à tortura
psicológica.
Ele tirara os óculos escuros e agora parecia apenas um senhor
apagado de 76 anos, os cabelos escovados para trás, a barba grisalha, os
ombros tronchos meio caídos para a frente.
A CNV apostara na vinda de Malhães porque nas últimas semanas ele mostrara uma súbita abertura a entrevistas.
Ele fez revelações com riqueza de detalhes aos jornais O Globo e O
Diae à Comissão Estadual da Verdade no Rio. Disse que foi ele quem deu
uma solução final ao corpo do deputado Rubens Paiva, desenterrando-o de
uma praia do Rio para lançá-lo no mar, ou em um rio – ele deixava em
aberto.
Mas no depoimento à CNV, desmentiu a "verdade" que recém-revelara sobre Rubens Paiva – e confirmou muitas outras.
Malhães não quis dar nomes a seus comparsas nem números a suas vítimas.
Mas disse ter torturado "uma quantidade razoável" de pessoas, ter
matado “alguns” e confirmou ter mutilado corpos para impedir sua
identificação caso fossem encontrados.
"Naquela época não existia DNA. Quais são as partes que podem
identificar um corpo? Arcada dentária e digitais", afirmou, explicando
que portanto os dentes eram quebrados e o topo dos dedos, cortados.
"Eu cumpri o meu dever. Não me arrependo", disse ele.
Malhães agora ocupava a cadeira do interrogado, microfones
dispostos à sua frente, e do outro lado da mesa estavam os membros da
CNV, com José Carlos Dias e Rosa Cardoso conduzindo as perguntas. Sua
esposa estava na cabeceira da mesa, e sem mexer a cabeça alternava o
olhar entre o marido e seus interrogadores.
Eles lhe mostraram fotos de pessoas que, acredita-se, foram
assassinados ou desapareceram depois de passar pela Casa da Morte. O
coronel alegou não reconhecer as fotos. Disse que nenhuma daquelas
pessoas passou por suas mãos.
"Essas pessoas que vocês estão citando eram guerrilheiros, eram
luta armada, não eram pessoas normais. Não foram presos porque jogavam
bolinha de gude ou soltavam pipa."
Argumentou que hoje as pessoas não conseguem entender quais eram os
problemas enfrentados, e que a verdade precisa ser "informada".
"Quantos morreram? Tantos quanto foram necessários."
"Não sou sentimental!"
Dias e Cardoso faziam uma pergunta atrás da outra, muitas vezes
cortando suas respostas pela metade. Malhães esboçou alguma impaciência
mas permaneceu calmo, sempre tratando-nos por "senhores".
Guerrilheiras mulheres, ele disse que via como se fossem homens.
Mas "eu tinha verdadeiro pavor de interrogar as mulheres e, vamos dizer,
gays, para não usar a palavra que se usava naquele tempo."
Isso porque mulheres ou homossexuais, segundo o coronel, preferiam
morrer a revelar os nomes dos amantes ou maridos. Já os homens falariam
depois de duas ou três horas. "Você 'ganhar' uma mulher é uma coisa,
assim, de outro mundo", disse, sem precisar a que método de
interrogatório se referia.
E Rubens Paiva? Perguntado novamente sobre a operação para
encontrar a cova do deputado e sumir com seu corpo, notícia que teve
ampla repercussão na semana passada, Malhães agora disse não ter sido
ele quem executou a missão, embora tenha recebido a tarefa inicialmente.
"Eu só disse que fui eu porque eu acho uma história muito triste
quando a família passa 38 anos querendo saber o paradeiro. Eu não sou
sentimental, não. Mas tenho as minhas crises."
A versão a jornalistas teria sido dada "para pôr um ponto final na história".
Mas no depoimento ficou claro o incômodo de Malhães com a
repercussão das matérias do Globo e do Dia, ambas baseadas em longas
entrevistas que deu em mais de um dia a repórteres dos dois veículos.
"O defeito do jornalista é que eles são ávidos por novidades. Se
ligassem os fatos não publicariam algo errado", criticou, dizendo ter
sido vítima de reportagens "fundamentalmente maliciosas", disse.
Por isso, estaria agora procurando falar em forma de parábolas –
"como fazia Cristo" – para que cada um pudesse interpretar suas palavras
da sua forma.
Culpa
Ao fim do depoimento, depois de confirmar seus crimes, Malhães foi
empurrado na cadeira de rodas de volta para o carro, de volta para a
rua, de volta para casa.
“Mas deixou entrever o calvário pelo qual sua família começa a passar após ter começado a tornar públicos seus crimes.
Quando Dias insistiu para que falasse sobre os corpos que
descaracterizava, ele se negou a informar quem ele havia "feito". Disse
não ter medo de vingança, mas de sanções aos seus filhos.
"Seus filhos não têm culpa do pai que têm", disse Dias.
"É. Também concordo. Mas isso não é verdade. Eu tenho cinco filhos e
oito netos. Com essas reportagens que saíram, eles estão sofrendo
sanções".
"Mas sofreriam mais se soubessem – 'meu pai cortou os dedos e
cortou o pescoço de fulano de tal’, ou então de uma pessoa cujo nome
eles não sabem? Que diferença faz?", insistiu Dias.
"Muita. Essa pessoa também tem família."
Ao fim da sessão, não foram permitidas perguntas à imprensa. Os
jornalistas recolheram os microfones da mesa e alguém pegou uma caneta,
perguntando se Malhães a havia usado. Na dúvida, passou um paninho.
"Tenho nojo desse cara."
Dias ressaltou a importância do depoimento, principalmente por Malhães ter sido uma figura de alto escalão no regime militar.
"Acima dele, todos os degraus naturalmente tinham conhecimento da
tortura. Era uma política de estado, usada para combater os que se
opunham ao regime."
Segundo Dias, poucas vezes o Brasil teve uma confissão como esta,
com um torturador não apenas admitindo mas também justificando a prática
de torturar aqueles que considerava o inimigo.
"Mas eu não diria que ele foi corajoso. Acho até que ele foi um
exibicionista, mostrando todo esse caráter mórbido que está presente no
caráter dele."
Geisel investigou e confirmou abuso nas prisões a pedido de Castello Branco
Elio Gaspari | Arquivos da Ditadura
Os primeiros casos de tortura em quartéis e prisões ocorridos
durante o regime militar, ainda em 1964, não foram punidos, apesar das
claras evidências levantadas em apurações conduzidas pelo próprio
Exército.
Já em 2 de abril daquele ano, portanto no dia seguinte ao golpe, o
líder comunista Gregório Bezerra foi amarrado quase nu à traseira de um
jipe das Forças Armadas e arrastado pelas ruas de Recife (PE). Em
seguida, foi espancado com uma barra de ferro, em praça pública, por um
oficial do Exército. Episódios parecidos ou piores repetiram-se em
diversas cidades de Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande
do Sul.
Após as primeiras denúncias, o regime chegou a se movimentar. O
presidente Castello Branco designou Ernesto Geisel, então chefe do
Gabinete Militar, para coordenar as investigações. Geisel viajou pelo
país e elaborou um relatório que, apesar de tímido, admitia a prática de
sevícias contra os opositores. Mesmo assim, nada aconteceu.
O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony foi pioneiro.
Denunciando violências em artigos no Correio da Manhã, recebeu sua
primeira ameaça no dia 14 de abril de 1964.
Também no Correio da Manhã o repórter Marcio Moreira Alves
sustentou uma campanha revelando a existência de tortura nos porões. A
série seria reunida em seu livro Torturas e torturados, lançado em 1966.
Em um exemplar do livro, que fazia menção ao relatório de Geisel, o
futuro general-presidente anotou: a investigação do militar não puniu
ninguém, mas teve “ao menos o mérito de paralisar a tortura”. Inibiu,
pois foram poucos os novos casos durante o governo Castello Branco, mas
não paralisou. E como nenhum torturador foi punido, ela sobreviveu.
Blog do Luis Nassif
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