Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Brutalidade contra Dirceu é uma tentativa de nos convencer de que não adianta reagir
Num país
que levou um mais de 40 anos para constituir uma Comissão da Verdade
para apurar os crimes do passado do regime militar, talvez seja o caso
de pedir a abertura de um novo item de sua pauta para investigar ataques
aos direitos humanos que tem sido cometidos nos dias de hoje. O
primeiro nome é José Dirceu.
O caso é exemplar.Embora
nunca tenha recebido, em forma definitiva, uma sentença em regime
fechado, o esforço para impedir Dirceu de respirar o oxigênio que só se
encontra fora de uma prisão foi reforçado. Tudo se move para impedir
que ele possa sair à rua, caminhar como uma pessoa durante oito horas
por dia, trabalhar como um cidadão, conversar com homens e mulheres que
não são nem carcereiros, nem advogados, nem parentes tensos, de olhos
úmidos, nas horas tensas de visita.
Como se fosse um
delírio, assistimos a um ato de terrorismo que não ousa dizer o seu
nome, mas não pode ser definido de outra forma.
Ou como você vai
definir um pedido de grampo telefônico que envolve o palácio da
Presidência da República, o Congresso? Vamos fingir que não é um ataque
à privacidade de Dilma Rousseff, constranger 513 parlamentares,
humilhar onze ministros, apenas para maltratar os direitos de Dirceu?
Vamos encarar os fatos. É um
esforço -- delirante? quem sabe? -- para rir do regime democrático,
gargalhar sobre a divisão de poderes, atingir um dos poderes emanam do
povo e em seu nome são exercidos.
Pensando em nossos prazos
históricos, eu me pergunto se vale à pena deixar para homens e mulheres
de 2050 a responsabilidade de coletar informações para apurar fatos
desconhecidos e definir responsabilidades pelo tratamento abusivo e
injusto que tem sido cometido contra Dirceu.
Sim, Dirceu foi um entre tantos
combatentes que a maioria de nós não pode conhecer pelo nome nem pelo
rosto, lutadores corajosos daquele Brasil da ditadura.
Depois de ajudar a liderar um
movimento de estudantes que impediu, por exemplo, que o ensino
brasileiro fosse administrado por pedagogos do governo norte-americano,
Dirceu tomou parte da vitória do país inteiro pela democracia. Sem
abandonar jamais uma ternura pelo regime de Fidel Castro que ninguém é
obrigado a partilhar, mostrou-se um líder político capaz de negociar
com empresários, lideranças da oposição e governantes estrangeiros.
Hoje ele se encontra no
presídio da Papuda, impedido de exercer direitos elementares que já
foram reconhecidos pelo ministério público e até pelo serviço
Psicossocial. Trabalha na biblioteca. Já se ofereceu para ajudar na
limpeza.
Sua situação é dramática mas ninguém precisa esperar até 2050 para tentar descobrir que há alguma coisa errada, certo?
Basta caráter. Em situações
políticas determinadas, este pode ser o dado decisivo da situação
politica. Pode favorecer ou pode prejudicar os direitos das vítimas e
também iluminar a formação das novas gerações. Os direitos humanos
elementares, as garantias sobre a vida e a liberdade, costumam depender
disso com frequência.
Vejam o que aconteceu com o
general José Antônio Belham. Em 1971, ele exibia a mais alta patente na
repartição militar onde Rubens Paiva foi morto sob torturas.
Quando precisou explicar-se, 43
anos mais tarde, Belham afirmou que não se encontrava ali. Estava de
ferias. Acabou desmentido de forma vergonhosa. Consultando suas folhas
de serviços, a Comissão da Verdade concluiu que o general não era
verdade. Ele não só estava lá como recebera os proventos devidos pelo
serviço daqueles dias.
Esse é o problema.
Ninguém é obrigado a ser herói. Como ensina Hanna Arendt, basta cumprir
seu dever. Caso contrário, a pessoa se deixa apanhar numa situação que
envergonha a mulher, os filhos, os netos – sem falar nos amigos dos
filhos, nos amigos dos netos. Nem sempre é possível livrar-se do vexame
de prestar contas pela própria história.
Lembra daquele
frase comum em filmes de gangster, quando o herói recebe uma advertência
criminosa: “você vai se arrepender de estar vivo?” Isso também pode
acontecer com pessoas que não tem caráter.
Imagine como vai
ser difícil, para homens e mulheres de 2050, explicar seu silêncio
diante de tantos fatos que envolvem o tratamento dispensado a Dirceu.
Ele foi cassado em 2005 por “quebra de decoro parlamentar”, essa
acusação que, sabemos há mais de meio século, é tão subjetiva que
costuma ser empregada para casos de vingança e raramente serviu para
fazer justiça -- porque dispensa provas e fatos, vale-se apenas de
impressões e convenções sociais que, como se sabe, variam em função de
tempo e lugar, de pessoa, de geração e até classe social.
Em 2012, não se
encontrou nenhuma prova capaz de envolver Dirceu no esquema de
arrecadação e distribuição de recursos financeiros para as campanhas do
PT. A necessidade de garantir sua punição de qualquer maneira explica a
importação da teoria do domínio do fato. Inventaram uma quadrilha porque
era preciso condenar Dirceu como seu chefe mas o argumento não durou
dois anos. Depois que o STF concluiu que não havia crime de quadrilha,
ficou difícil saber qual era a atuação real de Dirceu nessa fantasia.
Pensa que o Estado brasileiro
pediu desculpas, numa daquelas solenidades que nunca receberão a atenção
merecida, com as vítimas dos torturadores do pós-64? Pelo contrário. O
sofrimento imposto a Dirceu aumentou, numa forma perversa de punição.
Numa sequencia da doutrina Luiz
Fux, que disse no STF que os acusados devem provar sua inocência,
coube-lhe tentar provar o que não falou ao celular com um Secretário de
Estado da Bahia.
Foi invadido em sua privacidade, desrespeitado em seus direitos humanos. Para que? É um espetáculo didático.
Como cidadão, tenta-se fazer
Dirceu cumprir a função de ser humilhado em publico – ainda que boa
parte do público não se dê conta de que ele próprio também está sendo
ultrajado. Através desse espetáculo, tenta-se enfraquecer quem reconhece
seu papel político, quem reconhece uma injustiça – e precisa ser
convencido de que não adianta reagir para tentar modificar essa
situação.
Não poderia haver lição mais
reacionária, própría daqueles homens que fogem da Comissão da Verdade
com mentirinhas e desculpas vergonhosas.
Não se engane: o esforço para
inocular um sentimento de fraqueza em cidadãos e homens do povo é
próprio das ditaduras. Fazem isso pela força -- e pela demonstração de
força, também.
Outra razão é política. Tenta-se
demonstrar que o sistema penitenciário do governo do Distrito Federal –
cujo governador é do PT, como Dirceu e todos os principais réus
políticos dessa história, você sabe -- não é capaz de cuidar dele,
argumento sob medida para que seja conduzido a uma prisão federal, onde
não poderá cumprir o regime semiaberto.
Este é o objetivo. Vai ser alcançado? Não se sabe.
Animal consciente
dos estados de opressão, o que distingue os homens dos vegetais – e de
alguns animais inferiores – é o reconhecimento da liberdade.
O que se quer é
encontrar uma falta disciplinar grave, qualquer uma, que sirva como
pretexto para revogar os direitos de Dirceu. Pretende-se obter uma
regressão de sua pena e conseguir aquilo que a Justiça não lhe deu,
apesar do show – o regime fechado.
Isso acontece porque o projeto,
meus amigos, é o ostracismo – punição arcaica, típica dos regimes
absolutistas. Você lembra o que disse Joaquim Barbosa:
"Acho
que a imprensa brasileira presta um grande desserviço ao país ao abrir
suas páginas nobres a pessoas condenadas por corrupção. Pessoas
condenadas por corrupção devem ficar no ostracismo. Faz parte da pena".
Imagine a maldade que é
deixar tudo isso para os homens e mulheres de 2040. Imagine as páginas
nobres da imprensa, dos jornais, das revistas. Pense como vai ser
difícil, para os leitores do futuro, entender o que Joaquim Barbosa
quis dizer com isso.
Mais uma vez teremos uma página
horrenda da história e cidadãos perplexos a perguntar: como foi
possível? O que se queria com tudo aquilo?
E, mais uma vez,
num sinal de que se perdeu todo limite, vamos pedir desculpas. As
futuras gerações merecem um pouco mais, concorda?
Não precisam encarar esta derrota colossal de todos que lutaram com tanta coragem pela democracia.
Isto É
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