qui, 24/04/2014 - 21:22
- Atualizado em 24/04/2014 - 21:44
Quando teve início a grande crise, com os
bárbaros se aproximando das muralhas palacianas, o comando da
resistência procurou o Ministro Cardozo, ansioso por suas palavras
sábias. Ele coçou o queixo e balançou a cabeça com aquele movimento
lento e profundo do vero Richelieu do Planalto. Mas nada disse. E todos
se acalmaram com seu estilo, próprio dos que não necessitam da palavras
para transmitir segurança.
Mas os bárbaros não se acalmavam,
querendo derrubar as muralhas do Palácio. E tornavam-se cada vez mais
ousados, não entendendo que a falta de ação do Ministro não era inação,
mas fruto de um intenso processo mental de análise da situação. Com o
conhecimento jurídico, a sabedoria política, a voz poderosa, ele
certamente estava esperando que todas as peças do jogo se encaixassem no
seu cérebro privilegiado para montar o quebra-cabeça, a estratégia
definitiva.
Seus companheiros entenderam e respeitaram seu silêncio.
Enquanto pensava, uma promotora atrevida
avançou além das barreiras e pediu a quebra de sigilo do Palácio. Todos
correram de volta à sala do mestre.
- Mestre Cardozo, e agora o que faremos? indagavam auxiliares aflitos.
E ele continuava no mutismo dos grandes estrategistas, balançando solenemente a cabeça, mas com tanta physique du rôle
que alguns dos presentes juravam que dos cabelos revoltos saíam chamas
de erudição, fagulhas de esperteza, lampejos de tirocínio. Seus
discípulos se acalmaram, certos de que ele não iria gastar seu brilho em
episódios menores. E mais uma vez respeitaram seu silêncio:
- Quando ele falar, será para apresentar a estratégia definitiva.
No quartel aliado, a Polícia Federal -
subordinada ao Ministro - disparava tiros para todo lado, sempre contra o
governo. O Senado se agitava, a Câmara regurgitava rebeliões encruadas,
os inimigos lançavam setas flamejantes, até que finalmente conseguiram
invadir a cidadela emplacando a CPI da Petrobras.
Naquela noite, trancados em uma sala, os estrategistas do Palácio indagavam-se sobre o que fazer.
Um estrategista político mais afoito imaginou a saída:
- Vamos encher essa CPI com temas que atinjam nossos inimigos. Nossas denúncias abafarão as deles.
Alguém ponderou:
- Isso é um tema jurídico: a CPI não
precisa ter foco? E se eles derrubarem no Supremo alegando que precisa
ter um objeto definido?
Todos os olhares se voltaram para a
referência jurídica, o Ministro Cardozo, que levantou-se de sua
poltrona, caminhou em direção ao corredor, sem nada dizer, apenas
pensando profundamente, mas tão profundamente que parecia que o
pensamento ganhava forma física e descia do espaço como fiapos de
ectoplasma diretamente para seu cérebro privilegiado
- Mestre, o que nos recomenda?
O Ministro nem consultou seus
alfarrábios. Interrompeu a caminhada, e, com o dom dos que têm a
jurisprudência inteira armazenada no cérebro, voltou-se lentamente para o
grupo e levantou a mão com o indicador como se apontasse alguma coisa
na abóbada da sala. Os olhares se voltaram para a direção apontada, até
se darem conta de que era um indicação mental, um sinal apaziguador,
tipo "orai e vigiai". E todos interpretaram como de apoio à tática.
À noite, a Ministra Rosa Weber, do STF, vetou a multi-CPI.
Voltaram todos para o Palácio. E aí finalmente o Ministro Cardozo pediu a palavra.
Houve um murmúrio de emoção. Finalmente,
ele exporia a estratégia final, o golpe fatal que derrotaria de vez a
oposição, expulsaria os inimigos para longe das muralhas, trazendo a paz
de volta ao reino.
Houve um silêncio absoluto, tão grande
que era possível ouvir o radinho do caseiro do Palácio sintonizado na
cobertura da última greve da polícia. Um psiu coletivo calou o rádio,
impedindo a conspurcação daquele momento único, em que, pela primeira
vez, o Ministro Cardozo iria se pronunciar.
Ele levantou-se lenta e solenemente,
jogou para trás os cabelos, como um autêntico Brossard remoçado,
pigarreou levemente, no estilo histórico de Evandro, aguçou o olhar
penetrante, como um Mangabeira saindo das nuvens do tempo, vestiu-se com
a autoridade moral de um Aleixo, a coragem cívica de um Almino,
voltou-se para as janelas do Palácio e contemplou o mundo, como fizeram
gerações e gerações de juristas que, das Arcadas, ajudaram a construir a
República.
Fez-se o silêncio sagrado e o Ministro Cardozo finalmente falou:
E nada mais disse, nem lhe foi perguntado, dada o fato de que todos os presentes perderam, eles também, a voz.
Na saída, um amigo intrigado lhe perguntou:
- Mas porque você nunca falava nada antes?
E ele, bem baixinho:
- É porque não tinha o que dizer. E quando não tenho o que dizer fico nervoso e perco a fala.
Blog do Luis Nassif
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