Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Você pode duvidar mas o retorno de Delúbio Soares a Papuda representa uma ameaça aos direitos de toda sociedade
O retorno de Delúbio Soares a
Papuda, sem direito ao trabalho externo, não permite qualquer dúvida.
Depois do retorno provável de outros condenados, o próximo da lista é
você.
Ao revogar uma jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça em vigor desde 1999, quatro anos antes
dele próprio ser nomeado para uma cadeira no STF, Joaquim Barbosa criou
uma situação nova, que atinge todos nós. Confirmou a disposição de
administrar a Justiça brasileira com métodos de ditador.
Ninguém com mais de 21 anos de
idade, vacinado, em pleno gozo de suas faculdades mentais, tem o direito
de imaginar que se trata de um caso isolado, limitado a duas dezenas e
meia de pessoas.
Estamos falando da Justiça sob
encomenda, aquela que se pratica para atingir um alvo político,
adaptando todos os meios disponíveis para chegar aos objetivos
necessários. Você pode chamar isso de "maior julgamento da história."
Pode dizer que vai "eliminar a impunidade." Ou pode dizer que é preciso
"dar exemplo."
Você pode ter a opinião que
quiser sobre os condenados da AP 470. Pode achar que são os maiores
criminosos de todos os tempos. Pode achar que são inocentes até que se
prove o contrário -- e isso não se provou no julgamento.
Mas precisa compreender que
atos de truculencia mais dura, gestos arbitrários, medidas que nada tem a
ver com a Justiça, são uma ameaça aos direitos da sociedade inteira --
mesmo que o atingido, em determinado momento, seja uma única pessoa.
Não se imagina que Joaquim
Barbosa pretenda levar de volta para a cadeia aqueles 100 000
prisioneiros que estão na mesma situação, no país inteiro. Seria
impraticável e desnecessário. O alvo é seletivo, bem definido e
tragicamente previsível.
Dois anos depois do julgamento, em
2012, quando se disputava a eleição municipal, no ano de eleições
presidenciais de 2014, teremos o circo destinado a caçar – no laço da
truculência -- prisioneiros ligados ao PT.
Mais uma vez.
Joaquim Barbosa é um homem mau, como
disse o professor Celso Bandeira de Mello, mas sua maldade não é
delirante, nem fora de controle. É calculada, planejada e medida. Sabe
aonde quer chegar e age com senso de estratégia.
Esquece os réus do mensalão
PSDB-MG que nem foram levados a julgamento, embora a denúncia seja mais
antiga. Esquece o DEM. Todos, no PSDB e no DEM, tiveram direito ao
desmembramento, ao segundo grau de jurisdição. Nenhum será submetido a
teoria do domínio do fato. Nenhum terá a pena agravada artificialmente.
Esquece o ex-ministro tucano
Pimenta da Veiga, que recebeu 300 000 reais na conta, meses depois de
deixar o ministério, em 2003, e sequer foi denunciado até agora. Esquece
Eduardo Azeredo, que conseguiu, pela renúncia, ser levado para a
primeira instância – José Dirceu, Delúbio Soares, 90% dos condenados da
AP 470, não tinham sequer um mandato para renunciar. Mas foram julgados
pelo STF, que não possui competência original para tanto, e agora não
têm onde cobrar o direito universal a revisão completa do julgamento,
como os demais terão caso venham a ser considerados culpados.
E se você ainda pensa assim,
“bem-feito, quem mandou ser mensaleiro?!” é bom começar a ler um pouco
sobre as tragédias políticas para entender como elas ocorrem.
O enredo das ditaduras sempre encontra personagens
obscuros, reais ou construídos pelos meios de comunicação de cada
época, que, culpados ou não por episódios difíceis de compreender,
servem como uma luva para a consolidação de um poder acima da
sociedade.
Até o incendio do Reichstag, que ajudou a fortalecer o nazismo, foi um caso difícil de compreender, lembra?
A Revolução Francesa transformou-se numa ditadura e, mais tarde, num império, pela prisão de seus heróis mais populares.
Um dos primeiros a ir para
guilhotina foi Danton, acusado de corrupção e julgado sumariamente. Um
dos últimos foi Robespierre, que era chamado o incorruptível. No fim da
linha, o morticínio pela guilhotina foi tão grande que até o crescimento
demográfico do país foi atingido.
O vitorioso foi um general,
Napoleão, mais tarde coroado imperador, com cetro, coroa e manto,
titular de um regime onde os direitos democráticos recém-criados foram
esfacelados e até o direito do povo escolher seus representantes foi
dificultado.
Se você acha que a
França do final século XVIII não tem nada a ver com o Brasil de 2014,
assista a entrevista a Roberto DÁvilla onde Joaquim Barbosa afirma sua
admiração por Napoleão Bonaparte.
Está lá, em vídeo, na internet. Ninguém tem o direito de dizer que não foi avisado.
Como sempre acontece, uma ditadura -- judicial ou não -- só pode consolidar-se num ambiente de covardia institucional.
Sem o silêncio e
sem gestos amigos, cúmplices, de quem deveria fazer a democracia
funcionar, uma ditadura não consegue se constituir.
Veja o que acontecia em 64, sob o regime militar.
A tortura precisava
da cumplicidade de médicos que, de plantão na caserna, examinavam
prisioneiros e procuravam orientar, cientificamente, o trabalho dos
carrascos. Tentavam prever, macabramente, até onde o sofrimento poderia
avançar. Mais tarde, quando o serviço estava terminado, apareciam
legistas para assinar atestados de óbito de acordo com a versão
conveniente.
No cotidiano, a sociedade
daquele tempo precisava ser alimentada por mentiras em letras de forma.
Não faltavam jornais nem jornalistas capazes de publicar notinhas onde a
morte de militantes pela tortura era descrita como atropelamento e
suicídio. Também não faltavam aqueles repórteres que, alimentados pelos
órgãos de informação, produziam textos que contribuiam para o
endurescimento político, a ampliação do sofrimento de quem não podia
defender. Nasceu, então, o repórter Amoral Neto, lembra?
Símbolo da tortura, o delegado Sergio Fleury era glorificado.
Não faltaram, na construção do
regime, políticos capazes de aprovar, em Brasília, a vacância da
presidencia da República para dar posse aos generais – embora o
presidente constitucional, João Goulart, não tivesse deixado o país.
Como era preciso legalizar o golpe, o STF deu aval a decisão do
Congresso.
Atualize os personagens acima,
substitua nomes, endereços. Lembre que vivemos, obviamente, sob outro
regime político, de liberade, democracia. Aí comprove, você mesmo, como
os papéis e as situações começam repetir-se, caso a caso.
A medicina subordinou-se a
política, no caso de José Genoíno. Não vamos julgar o valor científico
de tantos laudos medicos diferentes e contraditórios. Vamos admitir o
óbvio: Genoíno jamais teria sido examinado e reexaminado tantas vezes
se não houvesse o interesse exclusivo de justificar seu retorno a prisão
de qualquer maneira.
A oposição a Jango, em 1964,
chegou a acreditar que a ditadura seria de curta duração. Só não gosta
de admitir a razão de ter cultivado uma crença tão pouco crível.
Simples. Queria que o regime militar durasse o tempo necessário para o
extermínio político de adversários que não poderiam ser vencidos nas
urnas. Imaginava que depois receberia o Planalto numa bandeja. Não foi
enganada, como gosta de sugerir. Enganou-se.
Quanto aos jornais, a dúvida é
saber qual será o próximo a pedir desculpas pelo papel que desempenhado
em 64. Quando começarão a reavaliar o que fizeram na AP 470?
A covardia institucional de hoje repete o comportamento de meio século. O fundamento é o mesmo.
Quem não pode
derrotar o PT nem aquilo que ele representa – confesso que muitas vezes é
difícil saber o que realmente importa hoje – espera que medidas de
ditadura ajudem no serviço que eles próprios não conseguem realizar nas
urnas. Essa é a razão fundamental do silêncio.
Isto É
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