21 de junho de 2014 | 11:48 Autor: Fernando Brito
O diabo do tempo é que a gente pensa que escapa dele e ele, sem-vergonha, nos pega ali adiante.
Eu teria me avisado disso, se soubesse quando era jovem.
E é provável que eu, jovem, não desse a menor bola para o aviso.
Só quando a gente envelhece começa a prestar alguma atenção nestas
coisas de datas, como a de hoje, em que se completam dez anos da morte
de Leonel Brizola e dos 23 anos em que aquele guri que o interpelou,
cheio de pretensão, numa reunião política num modesto apartamento na Rua
Cabuçu, no Lins de Vasconcellos , um subúrbio do Rio de Janeiro.
Curioso, são estas cenas que me vêm, quando relembro.
Aquela, simples, do – para nós – com “o velho” que tinha a idade que tenho hoje, quase.
E a final, do dia em que soube da sua morte, na véspera da morte oficial, na segunda-feira, 21 de junho.
Porque foi na véspera que percebi sua morte, nos sinais inequívocos
do fim que o convívio íntimo e intenso me anunciaram também com meu avô
e minha mãe antes que os médicos o dissessem.
A forma com que nos despedimos – ele, acamado, erguendo o tronco para
apertar com as duas mãos a minha mão de adeus – e sua insistência para
que eu não deixasse de vir, no dia seguinte, avisaram-me e eu
retransmiti em casa:
- Preparem-se, o Brizola vai morrer, e não demora.
Entre uma e outra imagem, um quarto de século dentro da história de meu país.
Não é o caso de repassá-lo, aqui, cada um pode recordar e imaginar o que separa a ditadura militar da eleição de Lula.
Hoje é dia, apenas, de dizer o possível daquela experiência de vida,
que é minha própria vida, porque a intimidade tem recatos difíceis de
vencer e impossíveis de trair.
Do líder político, de seus acertos e erros, é ocioso e temerário que eu fale.
Porque não vou louvar os primeiros e muito menos condenar os equívocos.
Sou irreversivelmente parcial quando se trata dele.
Direi apenas que Brizola deu-me, ao longo de brigas e discussões que
nunca terminaram nem em capitulação nem em rompimento, alguns critérios
na política.
O primeiro é o do velho gauchismo da “honra e da dignidade”. Não as entregue a ninguém, não as tome de ninguém.
É curioso, porque as pessoas têm de Brizola a imagem de autoritário e
turrão – e volta e meia ele era, mesmo -, mas foi com ele (e com o
tempo) que aprendi a ser tolerante e a jamais odiar as pessoas, mesmo
detestando suas ideias e atos.
O segundo, que está lá em cima, na testa deste blog, é o de nunca
abrir mão da polêmica. Como ele dizia, “não somos todos ovelhas bem
branquinhas e mansas”.
Porque é a polêmica que politiza o povo, que o faz tomar partido, que
filtra, pelo debate, o que é bom e ruim, adequado ou inadequado.
O “pensamento único” que vivemos ao longo dos anos 90 e o “diktat” da
mídia mostram que, sem isso, o que sempre prevalece é o conservador, o
elitista, a pior corrupção que há, pior que a do dinheiro, a do
espírito.
Contra esta, mais um príncípio, o da austeridade.
Engraçado, também, que a imagem que se espalhou de Brizola, a de
fazendeiro rico, era o inverso de sua realidade, embora é claro que ele
não fosse pobre.
Mas não apenas era um pão-duro proverbial como, no exercício da função política, um homem de imensa austeridade.
Pequenos detalhes, pequenas cenas o revelavam sempre, desde não
servir uísque e dar exclusividade aos vinhos nacionais no Palácio
Guanabara, nos eventos de governo quanto na insólita situação que vivi
com ele quando, convidado para gravar o programa de Henry Maksoud, abriu
mão do velho e mofado Hotel Jaraguá, em que sempre ficávamos quando
íamos a São Paulo.
Afinal, era grátis no Maksoud Plaza, onde ele entrou meio
acabrunhado, olhando aquela escultura-troço que vinha lá da imensidão da
altura, rumo a uma suíte presidencial que lhe havia sido reservada.
Quando entramos no apartamento, com um carpete que, de tão alto, quase
fazia desaparecer os sapatos, ele anunciou que iríamos para o Jaraguá.
Tanto tapete, disse-me , acabava por amaciar um homem.
Peço que me desculpem se falo dos reflexos meramente pessoais em mim
de um homem que fez parte da História, porque disto é sempre tempo de
falar (e lembrar do que deixou de ensinamentos) na política.
É que hoje é um destes dias em que me encontro com o tempo e os espelhos.
E que me dou os avisos que, em outra época, não escutaria.
Dia de vestir um velho casaco de brim, que ele esqueceu num estúdio, numa gravação e eu surrupiei, confessadamente, há 14 anos.
Desbotado, puído, mas bom para proteger a gente do frio do tempo da saudade.
E manter, guarda-fogo, uma chama que precisa seguir acesa.
Tijolaço
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