Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Campanha permanente contra a política teve um efeito óbvio: diminuiu a disposição de ir às urnas
Diz a lenda que, ao mastigar animais aprisionados em suas mandíbulas, os crocodilos costumam verter lágrimas pelos olhos.
Não sei se é verdade.
Mas, ao registrar a falta de
interesse do cidadão comum, em especial da juventude, pela política,
grandes meios de comunicação e pregadores de ar sisudo e discurso
moralista adoram exibir uma reação sentimental – e lacrimejar como esses
répteis gigantescos, o mais próximo parente dos dinossauros sobre a
face da Terra.
As lágrimas
lendárias dos crocodilos pretendem sugerir que eles não tem a menor
responsabilidade pelo sofrimento de suas presas – e até sofrem por seu
destinos. O mesmo ocorre com o desinteresse pela política.
Os números são reais: 26% de nossos eleitores dizem não ter nenhum interesse pela política; 29% dizem que tem pouco interesse.
Outro dado relevante: só 25%
dos jovens entre 16 e 17 anos, para quem o voto não é obrigatório, estão
registrados para votar. Em 2006, o número era 39%.
O aspecto
especialmente curioso desses números é outro. Diz respeito aos
benefícios reais que a política, sob regime democrático, tem feito ao
país nos últimos anos.
Do ponto de vista da maioria
dos brasileiros, dificilmente será possível encontrar um período da
história em que grandes parcelas da população puderam obter melhorias
tão importantes em sua existência -- através do voto e de seus
representantes eleitos. Esqueçamos, por um momento, que estamos num ano
de eleição presidencial, onde cada menção positiva é vista como
suspeita. Vamos falar de fatos objetivos.
Alvo de crítica universal pelo
perfil desigual de sua distribuição de renda, hoje o Brasil é objeto
permanente de elogios – pelos esforços realizados para combater essa
situação, seja através do Bolsa Família, da lei do salário mínimo, de
programas quje beneficiam a população pobre e negra. O governo mantem um
programa de habitação popular cujos méritos são reconhecidos pelos
adversários mais duros. Os pobres nunca tiveram acesso tão amplo ao
ensino superior como agora. Os juros estão salgadíssimos mas o crédito
popular nunca foi tão amplo, permitindo a expansão do consumo num padrão
impensável há uma década. O paraíso de uma sociedade igualitária está
longe, muito longe, e talvez nunca seja alcançado. A saúde pública segue
um drama. A edudação também. Mas é preciso ser desonesto para negar que
ocorreram melhorias surpreendente, num prazo relativamente curto.
Num país que passou duas
décadas ouvindo elogios nostálgios ao crescimento econmobtido durante o
regime militar, os números dos últimos anos lavaram a alma de quem tem
amor pela democracia. Não por acaso, um Ibope de 2010 mostrava que, pela
primeira vez em muitos anos, a maioria dos brasileiros considerava que a
eleição era uma forma eficiente de defender seus interesses.
Mesmo assim, em 2014 o desencanto com a atividade política está aí, nas conversas de muitas pessoas.
Por que?
Vamos combinar: deixando de
lado nostalgias impressionistas, nunca se demonstrou que os políticos
de hoje são moralmente piores que os “de antigamente”. Não há
escandalômetro confiável a respeito de nossa vida pública.
Sendo assim, a explicação não
se encontra na atividade política, em si, mas na forma como ela é vista e
apresentada aos brasileiros, na ideologia que encobre cada narrativa,
cada episódio, cada história. As pessoas estão convencidas de que a
política nunca esteve tão contaminada por práticas condenáveis.
Isso não acontece por acaso.
Esta não foi, apenas, uma década onde a população colheu benvindos
benefícios e melhorias, inseparáveis do exercício do voto e da
liberdade.
Também foi aquela em que, por
motivos difíceis de aceitar mas fáceis de compreender, o país assistiu a
uma campanha permanente de ataque e criminalização aos políticos e ao
regime democrático. É possível encontrar panfletos da conservadora UDN
que denunciavam a “crise moral” do país na campanha presidencial de
1950. É sempre bom lembrar que o golpe de 64 teve como lema declarado o
combate a subversão e a corrupção. Mas a partir de 2006 o país entrou
num curso único em sua história para desmoralizar a atividade política,
enfraquecer os políticos e criminalizar a democracia. Não por acaso, o
desinteresse dos jovens sobre uma alta nesse período. Contra 39%
registrados para votar em 2006, apenas 32% fazem o mesmo em 2010.
Numa imensa dificuldade para
retornar ao poder através do voto, a oposição contou com auxílio
assumido dos meios de comunicaçao para investir a fundo no atalho da
judicialização. Pouco importava se, no meio do caminho, fosse necessário
fazer uns poucos mortos e feridos entre aliados de segunda linha, que
teriam de ser sacrificados, cuidando-se para que fosse da forma menos
dolorida possível.
O essencial era recuperar o
poder de mando. Atingir o núcleo político responsável pelas mudanças,
mesmo que elas estivessem longe de qualquer alteração grandiosa. Era
preciso quebrar essa força organizada, construída de forma lenta e
desigual desde a luta pelo fim da ditadura militar. Já que não foi
possível cooptar a maioria dos quadros mais importantes para atuar a
favor dos antigos inimigos, ainda que tenha sido possível aproximar-se e
mesmo fazer alianças espantosas, era necessário colocar uma parcela dos
líderes e dirigentes fora de combate, desmoralizada, atrás das grades,
na cadeia, que é lugar de bandido, sendo tratados sem o menor respeito
por direitos elementares, retratados em tom odioso como bandoleiros,
inescrupulosos, mercenários – no ato final de um circo com coro,
orquestra, TV e animais muito selvagens, caninos sempre à mostra e
apetite insaciável, sem comparação com os próprios crocodilos
lacrimejantes.
Nesse universo, evitando
debates e contradições desfavoráveis, os meios de comunicação
suprimiram a cobertura política da política. Num país que deve ter
orgulho de seus cientistas sociais, o debate de ideias foi monopolizado
pela economia de mercado, sem permitir abertura para visões opostas e
contraditórias – que podem refletir interesses opostos e contraditórios,
também. Os protagonistas desse tempo não querem mudanças. Quem acusar,
condenar, prender – primeiro passo para a glorificação e o exercicio do
poder de Estado sem necessidade de atrair, conquistar e convencer o
povo, em nome de quem emanam todos os poderes da República.
Este é o país onde a vontade de votar diminui, eleição após eleição. Poderia ser diferente?
Isto É
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