segunda-feira, 9 de junho de 2014

CELSO DANIEL E O SHOW PÓS-COPA


Paulo Moreira Leite



Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".

Em muitos aspectos, investigação sobre morte de Celso Daniel foi ensaio geral para desvios da AP 470


 Doze anos depois da morte do prefeito Celso Daniel, de Santo André, as investigações sobre o caso  podem ser estudadas como um ensaio geral para a Ação Penal 470.


 Em 2002, tentou-se, sem sucesso, colocar o crime de Santo André no meio da campanha de Luiz Lula da Silva. A tentativa contou com apoio do PGR da época, Geraldo Brindeiro, mas foi derrubada no Supremo Tribunal Federal. Em 2014, forma-se uma torcida por um showzinho pós-Copa do Mundo: julgar Sergio Gomes da Silva, o Sombra, apontado pelo Ministério Público de ser o mandante do crime, antes da corrida as urnas. 


 A oposição pretende associar o Partido dos Trabalhadores a um comportamento suspeito e  violento, usando a morte de Celso Daniel como exemplo.  Referindo-se a decisão de Joaquim Barbosa deixar o Supremo, onze anos antes do limite da idade, o líder do PSDB Antonio Imbassay, chegou a dizer ao Globo:
      - O ministro Barbosa deve ter todos os motivos dele. Ele viu o caso de Celso Daniel e não pode deixar de ter motivo de preocupação. Afinal, foi ele o responsável por por ter colocado os líderes da quadrilha do PT na Papuda. 


      O ensaio geral de Santo André, doze anos atrás, reuniu vários elementos que se veria na AP 470, tanto um ministério publico disposto a acusar o PT de qualquer maneira, como uma imprensa cada vez mais engajada num dos lados da investigação, sem disposição para fazer um exame distanciado e equilibrado de fatos e provas. Dizer que a lenda de que as mensagens agressivas contra Joaquim Barbosa divulgadas pela internet possam vir a ter qualquer relação com sua saída do STF é cometer um exercício vulgar de puxa-saquismo de quem quer contar com seus favores na campanha eleitoral.  


    Joaquim deixou o Supremo num momento em que sua liderança na casa está enfraquecida e o risco de enfrentar derrotas no caso que lhe deu fama  é maior do que nunca. O procurador geral Rodrigo Janot acaba de determinar a volta de José Genoíno ao regime de prisão domiciliar. O estapafúrdio retorno forçado de quem trabalhava fora do presídio aguarda uma manifestação de apoio a Joaquim. A condenação é geral. Outras mudanças equivalem a autocrítica do que se passou na AP 470. O STF já decidiu que nenhum político será levado a julgamento com TV. Também definiu que todos terão direito a um segundo grau de jurisdição. Istoé: o julgamento deveria ter sido desmembrado. Precisa de mais?

    
    Até hoje, associar a morte de Celso Daniel ao Partido dos Trabalhadores é um exercício que não se explica por fatos e provas conhecidas, que estão à vista de todos. Tem base em impressões, suposições e hipóteses do Ministério Público de São Paulo, contestadas pela Polícia Federal e pela Polícia Civil de São Paulo e rejeitadas, em seu devido momento, pelo próprio STF. 


     Um dos irmãos do prefeito assassinado, que chegou a denunciar o envolvimento de José Dirceu no esquema financeiro, concordou em retratatar-se na Justiça para não ser processado. Em 2006, os irmãos ainda passaram por um vexame no Congresso, quando foram confrontar-se com o Gilberto Carvalho, o ministro a quem acusaram de intermediar a remessa de recursos da prefeitura de Santo André para o PT. Um exame feito por um detector de mentiras, que acompanhava a acareação, concluiu que um dos irmãos, Bruno Daniel, “não estava sendo verdadeiro” quando acusava Gilberto Carvalho. 


   Em abril 2002, as provas  colhidas pela Polícia Civil e pela Política Federal – designada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso -- demonstravam que o prefeito fora vítima de um crime comum, levando o delegado Armando Oliveira da Costa Filho a encerrar o inquérito com esta conclusão. O inquérito teve respaldo da cúpula da polícia do Estado, formada por homens de confiança do governo Geraldo Alckmin. Quatro  anos depois, uma delegada, de outro departamento, encerrou um inquérito sobre o inquérito – agora em 2006, também  ano eleitoral  – que confirmou a conclusão inicial das duas polícias. Mesmo assim, o MP manteve sua denúncia, de crime encomendado. Foi um percurso semelhante, mas um pouco mais sinuoso e complicado. Por pouco não se chegou ao primeiro escalão do PT, como aconteceu com a AP 470. 


 No final de junho de 2002, quando a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva na campanha presidencial já estava firmada, o Ministério Público de São Paulo levou a Brasília uma denúncia contra José Dirceu, coordenador da campanha do PT, ao procurador Geraldo Brindeiro.  Ignorando a conclusão do inquérito da Polícia Civil e da PF, encerrada dois meses antes, o Ministério Público se baseava no depoimento de um dos irmãos de Celso Daniel, e inimigo político do PT. Este dizia abertamente que pretendia “abrir os olhos” do eleitor na campanha eleitoral e tentava apontar um  envolvimento de Dirceu no esquema financeiro da prefeitura de Santo André – e quem sabe encontrar ligações com a morte de Celso Daniel. Quase deu certo. 


 Cinco anos depois de arquivar a confissão de dois parlamentares que confessavam haver recebido R$ 200 000 para votar a favor da emenda que permitiu Fernando Henrique disputar a reeleição, Brindeiro demonstrou outros humores diante da denúncia contra  Dirceu. Conforme o PGR, Dirceu poderia ser acusado do crime de concussão, que, conforme o artigo 316 do Código Penal, consiste em “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa”.  


Num país de Justiça morosa, aquele processo em véspera de eleição inspirou uma rara preocupação com a celeridade. Para evitar que as investigações demorassem muito, Brindeiro deu prazo de 45 dias para apuração da denúncia – daria para anunciar muitas conclusões antes do primeiro turno, veja só. Um sorteio para definir o relator da denúncia acabou apontando Nelson Jobim para cuidar do caso. 


Jobim, em 2002, nada tinha a ver com o ministro da Defesa de Lula, nomeado em 2007, permanecendo no cargo até 2011. Ele era  visto como o homem do PSDB no Supremo. Fora ministro da Justiça de Fernando Henrique e nessa condição fora indicado para o STF. Jobim também havia ajudado a nomear seu amigo Gilmar Mendes para a casa. Outra indicação foi Ellen Gracie. Muito amigo de José Serra, adversário de Lula na campanha, Jobim havia dividido um apartamento em Brasília com o candidato tucano quando os dois eram membros da Constituinte. Mas Jobim examinou a denúncia contra o adversário de seu amigo Serra e mandou que fosse arquivada. Definiu como “denuncismo”, com base no  “ ouvir dizer. “
Graças a essa decisão – e só por causa dela – a morte de Celso Daniel não entrou na agenda eleitoral de 2002. 


Mas o assassinato entrou e saiu várias vezes das conversas. A criminalização do PT tinha uma grande utilidade política na campanha e também na cidade, como se veria no mes seguinte, quando se montou uma CPI na Câmara Municipal. Vincular o PT – de qualquer maneira – ao assassinato era uma forma de dar credibilidade a defesa de empresários acusados de pagar propina.Pois uma coisa é subornar uma autoridade que pede dinheiro. Outra, bem diferente, é render-se a um grupo político capaz de cometer crimes mais graves contra quem não se submete, certo? Nesta narrativa,  você nem pode ser chamado de corruptor. É vítima de uma quadrilha, certo?


A hipótese de envolvimento de petistas num homicídio era um excelente argumento para empresários  que alimentavam um esquema corrupto de troca de favores na prefeitura – antes e depois da chegada de Celso Daniel. 


As investigações do assassinato desvendaram esse esquema em detalhes. Mostraram quem recebia em nome da prefeitura. Mas também apontaram para empresas que pagavam propinas em troca de privilégios. Entre elas era possível apontar grandes fortunas da cidade. Ou seja: se havia um porão na prefeitura, ele envolvia muita gente graúda, não é mesmo? 


Para realizar a encenação tradicional do moralismo à brasileira, sempre seletivo, necessário para se permitir a punição de quem era acusado de corrupto e salvar a pele dos corruptores, era preciso produzir um teatro com personagens críveis. Foi assim que os  empresários da cidade deixaram de ser cúmplices e beneficiários para assumir a postura de vítimas. Montou-se uma CPI na Câmara Municipal, para funcionar mesma época em que o Ministério Público batia às portas do PGR em Brasília. Se a denúncia não tivesse sido rejeitada, teriamos aquela situação de barba e cabelo: enquanto os empresários denunciavam o PT em Santo André, as apurações contra Dirceu fariam barulho na  Capital Federal. Uma situação perfeita para combater a campanha de Lula na reta final da eleição. Com ajuda dos meios de comunicação, que há muito haviam abandonado qualquer preocupação com a isenção para fazer uma cobertura, operava-se uma delação premiada política. Quem pagava propina passou a dizer-se vítima de “extorsão”, recebendo o mesmo tratamento por parte dos meios de comunicação. Pobrezinhos. Não tinham culpa de nada. Já se fizera, uma década antes, uma operação semelhante junto a empreiteiros que pagavam propinas para o esquema de PC Farias, o tesoureiro de Fernando Collor.   


 Na AP 470, o ministério público conseguiu manter em sigilo a maior parte do trabalho da Polícia Federal, criando um novo inquérito, 2474, que sequer foi lido pelo conjunto dos ministros do STF antes do julgamento. Por causa disso, não foi possível conhecer as contradições e perceber que havia, em pontos essenciais, uma diferença de apuração e de pontos de vista, que poderia produzir uma mudança de fundo no julgamento. 


   No caso Celso Daniel, o trabalho das duas polícias andou mais depressa e o inquérito que negava o crime político ficou pronto e consolidado. Os policiais encontraram até uma testemunha essencial: um pequeno empresário que vinha sendo monitorado pelos sequestradores por vários dias mas teve a sorte de mudar a rotina no dia do crime, o que levou a captura do prefeito, numa escolha ao acaso, ocorrida  na última hora, conforme os criminosos disseram a polícia. 


 A Polícia Federal liderou boa parte da investigação. Fez escutas telefonicas que não confirmaram a hipótese de conluio de assessores e pessoas próximas do prefeito na organização do sequestro. Apanhados em momentos diferentes, os integrantes do bando criminoso jamais admitiram que haviam cometido um crime encomendado – embora isso até pudesse reduzir suas penas. O Ministério Público não  conseguiu provar que Sergio Gomes da Silva, acusado de ser o mandante, tenha tido um único contato com qualquer integrante da quadrilha. Ao descobrir que Sergio Gomes da Silva seguia acompanhando Celso Daniel em reuniões do PT onde se discutia como poderiam atuar num eventual governo Lula, favorito absoluto naquele ano, o delegado Armando Oliveira Costa Filho deixou uma pergunta que ninguém foi capaz de responder: “Por que o Sérgio Gomes da Silva iria matar sua galinha dos ovos de ouro? “ 


      Policiais que participaram das investigações chegam a ironizar a denuncia de que o prefeito teria sido torturado no cativeiro, o que seria uma prova de que fora capturado a mando de  pessoas conhecidas.Isso porque a denúncia de tortura baseia-se numa hipótese complicadíssima: deitado no cativeiro, o prefeito teria sido ferido de raspão por balas que batiam no chão e ricocheteavam em suas costas. Descontando o fato de que há muitas outras formas de se torturar uma pessoa, há um problema técnico intransponível essa tese. O chão do cativeiro era de areia. 

    
      A tese de crime encomendado não possuía a mais leve sustentação em provas factuais  quando ocorreu a aparição do delegado Romeu Tuma Jr. Foi Tuminha – o mesmo que acaba de escrever um livro com ajuda de um jornalista onde diz que Lula foi dedo-duro -- quem colocou um personagem novo na cena do crime: o assaltante Dionísio Severo, que fora preso no Sergipe. Dionísio  fugiu de helicóptero de uma penitenciária 48 horas antes do sequestro. Conforme Tuminha disse que Dionísio lhe disse e ele disse depois aos jornais, o assaltante fora contratado para comandar o sequestro. Mas Dionísio jamais escreveu o que disse, o que diminui o valor jurídico das palavras que Tuminha lhe atribui. Pois em seguida foi enviado para um presídio controlado por criminosos rivais, que já o tinham jurado de morte, e que, para mostrar que pelo menos os bandidos falavam a verdade, cumpriram o juramento na primeira oportunidade. Mesmo assim, com base naquilo que Tuminha falou que ouviu de Dionísio Severo, voltou-se a falar em crime encomendado. 


    Um bandido que fugiu da penitenciária diz que Dionisio estava mesmo no sequestro de Celso Daniel. Os policias acham que foi um depoimento induzido e contestaram o que ouviam na mesma hora. Numa entrevista dada a Folha, o suposto comparsa deixa claro que pouco sabia do sequestro.(Sequer foi capaz de afirmar que o também suposto comandante havia estado presente à cena do crime). 


     Enquanto isso não se prestou um minuto de atenção ao depoimento do filho de Dionísio,  que organizou a fuga da prisão, e que sempre negou qualquer ligação do pai com o sequestro. (A fuga, na verdade, nunca teve qualquer ligação com o sequestro, disse o filho. Deveria ter ocorrido vários dias antes, mas ele gastou o dinheiro reservado para a operação numa noitada de farra com drogas e garotas de programa).

      
Este comportamento seletivo inclui pessoas da família do prefeito. Adversários políticos de Celso Daniel – e do PT – eram tratados como como testemunhas idôneas e irmãos sofridos. Já a socióloga Ivone Santanna, mulher do prefeito, que chegou a ser homenageada publicamente por Celso Daniel num discurso, e convivia com ele, sempre recebeu outro tratamento. Liora, filha de Celso Daniel e Ivone, só teve os direitos reconhecidos depois que, para atender a família, submeteu-se a um segundo exame de DNA.  


Dias depois do sequestro, quando o repórter Armando Antenore, da Folha de S. Paulo, lhe perguntou sobre a hipótese de envolvimento de Sergio Gomes da Silva no sequestro que matara o namorado e pai de sua filha, Ivonne rebateu:
-- Delírio. Celso saiu para jantar com um amigo, que é da família. Não tem nada de "o prefeito saiu para jantar com um empresário". As pessoas não entendem a diferença? Ele saiu com um amigo. Meus filhos poderiam estar junto. Conheço Sérgio desde 1988. Repito: é um amigo.




Isto É

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