Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Em muitos aspectos, investigação sobre morte de Celso Daniel foi ensaio geral para desvios da AP 470
Doze anos depois da morte do prefeito Celso Daniel, de Santo André, as investigações sobre o caso podem ser estudadas como um ensaio geral para a Ação Penal 470.
Em 2002, tentou-se,
sem sucesso, colocar o crime de Santo André no meio da campanha de Luiz
Lula da Silva. A tentativa contou com apoio do PGR da época, Geraldo
Brindeiro, mas foi derrubada no Supremo Tribunal Federal. Em 2014,
forma-se uma torcida por um showzinho pós-Copa do Mundo: julgar Sergio
Gomes da Silva, o Sombra, apontado pelo Ministério Público de ser o
mandante do crime, antes da corrida as urnas.
A oposição pretende
associar o Partido dos Trabalhadores a um comportamento suspeito e
violento, usando a morte de Celso Daniel como exemplo. Referindo-se a
decisão de Joaquim Barbosa deixar o Supremo, onze anos antes do limite
da idade, o líder do PSDB Antonio Imbassay, chegou a dizer ao Globo:
- O
ministro Barbosa deve ter todos os motivos dele. Ele viu o caso de Celso
Daniel e não pode deixar de ter motivo de preocupação. Afinal, foi ele o
responsável por por ter colocado os líderes da quadrilha do PT na
Papuda.
O
ensaio geral de Santo André, doze anos atrás, reuniu vários elementos
que se veria na AP 470, tanto um ministério publico disposto a acusar o
PT de qualquer maneira, como uma imprensa cada vez mais engajada num dos
lados da investigação, sem disposição para fazer um exame distanciado e
equilibrado de fatos e provas. Dizer que a lenda de que as mensagens
agressivas contra Joaquim Barbosa divulgadas pela internet possam vir a
ter qualquer relação com sua saída do STF é cometer um exercício vulgar
de puxa-saquismo de quem quer contar com seus favores na campanha
eleitoral.
Joaquim deixou o Supremo
num momento em que sua liderança na casa está enfraquecida e o risco de
enfrentar derrotas no caso que lhe deu fama é maior do que nunca. O
procurador geral Rodrigo Janot acaba de determinar a volta de José
Genoíno ao regime de prisão domiciliar. O estapafúrdio retorno forçado
de quem trabalhava fora do presídio aguarda uma manifestação de apoio a
Joaquim. A condenação é geral. Outras mudanças equivalem a autocrítica
do que se passou na AP 470. O STF já decidiu que nenhum político será
levado a julgamento com TV. Também definiu que todos terão direito a um
segundo grau de jurisdição. Istoé: o julgamento deveria ter sido
desmembrado. Precisa de mais?
Até hoje, associar a morte
de Celso Daniel ao Partido dos Trabalhadores é um exercício que não se
explica por fatos e provas conhecidas, que estão à vista de todos. Tem
base em impressões, suposições e hipóteses do Ministério Público de São
Paulo, contestadas pela Polícia Federal e pela Polícia Civil de São
Paulo e rejeitadas, em seu devido momento, pelo próprio STF.
Um dos irmãos do prefeito
assassinado, que chegou a denunciar o envolvimento de José Dirceu no
esquema financeiro, concordou em retratatar-se na Justiça para não ser
processado. Em 2006, os irmãos ainda passaram por um vexame no
Congresso, quando foram confrontar-se com o Gilberto Carvalho, o
ministro a quem acusaram de intermediar a remessa de recursos da
prefeitura de Santo André para o PT. Um exame feito por um detector de
mentiras, que acompanhava a acareação, concluiu que um dos irmãos, Bruno
Daniel, “não estava sendo verdadeiro” quando acusava Gilberto Carvalho.
Em abril 2002, as
provas colhidas pela Polícia Civil e pela Política Federal – designada
pelo presidente Fernando Henrique Cardoso -- demonstravam que o
prefeito fora vítima de um crime comum, levando o delegado Armando
Oliveira da Costa Filho a encerrar o inquérito com esta conclusão. O
inquérito teve respaldo da cúpula da polícia do Estado, formada por
homens de confiança do governo Geraldo Alckmin. Quatro anos depois, uma
delegada, de outro departamento, encerrou um inquérito sobre o
inquérito – agora em 2006, também ano eleitoral – que confirmou a
conclusão inicial das duas polícias. Mesmo assim, o MP manteve sua
denúncia, de crime encomendado. Foi um percurso semelhante, mas um pouco
mais sinuoso e complicado. Por pouco não se chegou ao primeiro escalão
do PT, como aconteceu com a AP 470.
No final de junho de 2002,
quando a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva na campanha presidencial
já estava firmada, o Ministério Público de São Paulo levou a Brasília
uma denúncia contra José Dirceu, coordenador da campanha do PT, ao
procurador Geraldo Brindeiro. Ignorando a conclusão do inquérito da
Polícia Civil e da PF, encerrada dois meses antes, o Ministério Público
se baseava no depoimento de um dos irmãos de Celso Daniel, e inimigo
político do PT. Este dizia abertamente que pretendia “abrir os olhos” do
eleitor na campanha eleitoral e tentava apontar um envolvimento de
Dirceu no esquema financeiro da prefeitura de Santo André – e quem sabe
encontrar ligações com a morte de Celso Daniel. Quase deu certo.
Cinco anos depois
de arquivar a confissão de dois parlamentares que confessavam haver
recebido R$ 200 000 para votar a favor da emenda que permitiu Fernando
Henrique disputar a reeleição, Brindeiro demonstrou outros humores
diante da denúncia contra Dirceu. Conforme o PGR, Dirceu poderia ser
acusado do crime de concussão, que, conforme o artigo 316 do Código
Penal, consiste em “exigir, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em
razão dela, vantagem indevida. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e
multa”.
Num país de Justiça morosa,
aquele processo em véspera de eleição inspirou uma rara preocupação com a
celeridade. Para evitar que as investigações demorassem muito,
Brindeiro deu prazo de 45 dias para apuração da denúncia – daria para
anunciar muitas conclusões antes do primeiro turno, veja só. Um sorteio
para definir o relator da denúncia acabou apontando Nelson Jobim para
cuidar do caso.
Jobim, em 2002, nada tinha a
ver com o ministro da Defesa de Lula, nomeado em 2007, permanecendo no
cargo até 2011. Ele era visto como o homem do PSDB no Supremo. Fora
ministro da Justiça de Fernando Henrique e nessa condição fora indicado
para o STF. Jobim também havia ajudado a nomear seu amigo Gilmar Mendes
para a casa. Outra indicação foi Ellen Gracie. Muito amigo de José
Serra, adversário de Lula na campanha, Jobim havia dividido um
apartamento em Brasília com o candidato tucano quando os dois eram
membros da Constituinte. Mas Jobim examinou a denúncia contra o
adversário de seu amigo Serra e mandou que fosse arquivada. Definiu como
“denuncismo”, com base no “ ouvir dizer. “
Graças a essa decisão – e só por causa dela – a morte de Celso Daniel não entrou na agenda eleitoral de 2002.
Mas o assassinato entrou e saiu
várias vezes das conversas. A criminalização do PT tinha uma grande
utilidade política na campanha e também na cidade, como se veria no mes
seguinte, quando se montou uma CPI na Câmara Municipal. Vincular o PT –
de qualquer maneira – ao assassinato era uma forma de dar credibilidade a
defesa de empresários acusados de pagar propina.Pois uma coisa é
subornar uma autoridade que pede dinheiro. Outra, bem diferente, é
render-se a um grupo político capaz de cometer crimes mais graves contra
quem não se submete, certo? Nesta narrativa, você nem pode ser chamado
de corruptor. É vítima de uma quadrilha, certo?
A hipótese de envolvimento de
petistas num homicídio era um excelente argumento para empresários que
alimentavam um esquema corrupto de troca de favores na prefeitura –
antes e depois da chegada de Celso Daniel.
As investigações do assassinato
desvendaram esse esquema em detalhes. Mostraram quem recebia em nome da
prefeitura. Mas também apontaram para empresas que pagavam propinas em
troca de privilégios. Entre elas era possível apontar grandes fortunas
da cidade. Ou seja: se havia um porão na prefeitura, ele envolvia muita
gente graúda, não é mesmo?
Para realizar a encenação
tradicional do moralismo à brasileira, sempre seletivo, necessário para
se permitir a punição de quem era acusado de corrupto e salvar a pele
dos corruptores, era preciso produzir um teatro com personagens críveis.
Foi assim que os empresários da cidade deixaram de ser cúmplices e
beneficiários para assumir a postura de vítimas. Montou-se uma CPI na
Câmara Municipal, para funcionar mesma época em que o Ministério Público
batia às portas do PGR em Brasília. Se a denúncia não tivesse sido
rejeitada, teriamos aquela situação de barba e cabelo: enquanto os
empresários denunciavam o PT em Santo André, as apurações contra Dirceu
fariam barulho na Capital Federal. Uma situação perfeita para combater a
campanha de Lula na reta final da eleição. Com ajuda dos meios de
comunicação, que há muito haviam abandonado qualquer preocupação com a
isenção para fazer uma cobertura, operava-se uma delação premiada
política. Quem pagava propina passou a dizer-se vítima de “extorsão”,
recebendo o mesmo tratamento por parte dos meios de comunicação.
Pobrezinhos. Não tinham culpa de nada. Já se fizera, uma década antes,
uma operação semelhante junto a empreiteiros que pagavam propinas para o
esquema de PC Farias, o tesoureiro de Fernando Collor.
Na AP 470, o
ministério público conseguiu manter em sigilo a maior parte do trabalho
da Polícia Federal, criando um novo inquérito, 2474, que sequer foi lido
pelo conjunto dos ministros do STF antes do julgamento. Por causa
disso, não foi possível conhecer as contradições e perceber que havia,
em pontos essenciais, uma diferença de apuração e de pontos de vista,
que poderia produzir uma mudança de fundo no julgamento.
No caso Celso Daniel, o
trabalho das duas polícias andou mais depressa e o inquérito que negava o
crime político ficou pronto e consolidado. Os policiais encontraram até
uma testemunha essencial: um pequeno empresário que vinha sendo
monitorado pelos sequestradores por vários dias mas teve a sorte de
mudar a rotina no dia do crime, o que levou a captura do prefeito, numa
escolha ao acaso, ocorrida na última hora, conforme os criminosos
disseram a polícia.
A Polícia Federal liderou boa
parte da investigação. Fez escutas telefonicas que não confirmaram a
hipótese de conluio de assessores e pessoas próximas do prefeito na
organização do sequestro. Apanhados em momentos diferentes, os
integrantes do bando criminoso jamais admitiram que haviam cometido um
crime encomendado – embora isso até pudesse reduzir suas penas. O
Ministério Público não conseguiu provar que Sergio Gomes da Silva,
acusado de ser o mandante, tenha tido um único contato com qualquer
integrante da quadrilha. Ao descobrir que Sergio Gomes da Silva seguia
acompanhando Celso Daniel em reuniões do PT onde se discutia como
poderiam atuar num eventual governo Lula, favorito absoluto naquele ano,
o delegado Armando Oliveira Costa Filho deixou uma pergunta que ninguém
foi capaz de responder: “Por que o Sérgio Gomes da Silva iria matar sua
galinha dos ovos de ouro? “
Policiais que
participaram das investigações chegam a ironizar a denuncia de que o
prefeito teria sido torturado no cativeiro, o que seria uma prova de que
fora capturado a mando de pessoas conhecidas.Isso porque a denúncia de
tortura baseia-se numa hipótese complicadíssima: deitado no cativeiro, o
prefeito teria sido ferido de raspão por balas que batiam no chão e
ricocheteavam em suas costas. Descontando o fato de que há muitas outras
formas de se torturar uma pessoa, há um problema técnico intransponível
essa tese. O chão do cativeiro era de areia.
A tese de crime
encomendado não possuía a mais leve sustentação em provas factuais
quando ocorreu a aparição do delegado Romeu Tuma Jr. Foi Tuminha – o
mesmo que acaba de escrever um livro com ajuda de um jornalista onde diz
que Lula foi dedo-duro -- quem colocou um personagem novo na cena do
crime: o assaltante Dionísio Severo, que fora preso no Sergipe.
Dionísio fugiu de helicóptero de uma penitenciária 48 horas antes do
sequestro. Conforme Tuminha disse que Dionísio lhe disse e ele disse
depois aos jornais, o assaltante fora contratado para comandar o
sequestro. Mas Dionísio jamais escreveu o que disse, o que diminui o
valor jurídico das palavras que Tuminha lhe atribui. Pois em seguida foi
enviado para um presídio controlado por criminosos rivais, que já o
tinham jurado de morte, e que, para mostrar que pelo menos os bandidos
falavam a verdade, cumpriram o juramento na primeira oportunidade. Mesmo
assim, com base naquilo que Tuminha falou que ouviu de Dionísio Severo,
voltou-se a falar em crime encomendado.
Um bandido que fugiu da
penitenciária diz que Dionisio estava mesmo no sequestro de Celso
Daniel. Os policias acham que foi um depoimento induzido e contestaram o
que ouviam na mesma hora. Numa entrevista dada a Folha, o suposto
comparsa deixa claro que pouco sabia do sequestro.(Sequer foi capaz de
afirmar que o também suposto comandante havia estado presente à cena do
crime).
Enquanto isso não se
prestou um minuto de atenção ao depoimento do filho de Dionísio, que
organizou a fuga da prisão, e que sempre negou qualquer ligação do pai
com o sequestro. (A fuga, na verdade, nunca teve qualquer ligação com o
sequestro, disse o filho. Deveria ter ocorrido vários dias antes, mas
ele gastou o dinheiro reservado para a operação numa noitada de farra
com drogas e garotas de programa).
Este comportamento seletivo
inclui pessoas da família do prefeito. Adversários políticos de Celso
Daniel – e do PT – eram tratados como como testemunhas idôneas e irmãos
sofridos. Já a socióloga Ivone Santanna, mulher do prefeito, que chegou a
ser homenageada publicamente por Celso Daniel num discurso, e convivia
com ele, sempre recebeu outro tratamento. Liora, filha de Celso Daniel e
Ivone, só teve os direitos reconhecidos depois que, para atender a
família, submeteu-se a um segundo exame de DNA.
Dias depois do sequestro,
quando o repórter Armando Antenore, da Folha de S. Paulo, lhe perguntou
sobre a hipótese de envolvimento de Sergio Gomes da Silva no sequestro
que matara o namorado e pai de sua filha, Ivonne rebateu:
-- Delírio. Celso saiu para
jantar com um amigo, que é da família. Não tem nada de "o prefeito saiu
para jantar com um empresário". As pessoas não entendem a diferença? Ele
saiu com um amigo. Meus filhos poderiam estar junto. Conheço Sérgio
desde 1988. Repito: é um amigo.
Isto É
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