Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".
Na dosimetria, fase de definição das penas, o Supremo adotou um sistema faccioso de deliberação
O céu abriu um pouco, define um assistente de um dos onze ministros do STF, no final da sessão de ontem.
Ele se referia ao voto de Teori Zavaski, o ministro que interrompeu o
debate para questionar o ponto mais frágil das condenações produzidas
pela Ação Penal 470 – as penas de quem foi condenado por formação de
quadrilha, que atinge vários réus, entre José Dirceu e José Genoíno.
No percurso labiríntico que as discussões do STF costumam tomar, vez
por outra, a decisão de
Zavaski pode vir a ter um alcance muito maior do
que parece.
Zavaski anunciou que mudava seu voto, para concordar com a minoria
que, em deliberações nos dias anteriores, questionou a condenação por
quadrilha.
O ministro não anunciou exatamente o que irá fazer.
Se, por exemplo, enquadrar Dirceu na pena mínima, e for acompanhado
por outros ministros nessa decisão, o principal troféu político do
julgamento e outros réus poderão deixar o regime fechado e cumprir pena
em semi-aberto.
Não se sabe, ainda, qual o poder real de influência do voto de
Zavaski no STF. Se, a partir dos debates que devem ocorrer a partir de
hoje, ele for seguido por outros dois ministros, haverá uma maioria a
favor da revisão das condenações por formação de quadrilha.
Mesmo que os réus não venham a ser absolvidos desse crime, o que
seria o justo, em minha opinião, teriam a pena reduzida, o que seria um
dano menor.
Mas também pode não acontecer e o voto revisto de Zavaski se revelar um ponto fora da curva.
Em qualquer caso, o voto de Zavaski trouxe à luz o impasse de fundo
em que se encontrava o debate sobre embargos de declaração no STF.
Até então, em várias oportunidades, ministros até admitiam que haviam descoberto um erro em determinadas sentenças.
Mas se recusavam a fazer a correção necessária em função de um
argumento formal, de que os “embargos de declaração” não eram o momento
adequado para tanto.
Com um argumento diverso, o ministro Luiz Roberto Barroso chegou a
dizer que concordava com Ricardo Lewandovski no pedido de revisão da
pena do Bispo Rodrigues mas, recém chegado ao STF, não se considerava no
direito de refazer o julgamento.
O próprio Zavaski assumiu uma conclusão idêntica, neste e em outros casos, embora empregasse teses diferentes.
O debate de ontem foi iniciado por um voto do ministro Luiz Roberto
Barroso e foi a partir dali que surgiu a novidade que permitiu a Zavaski
reabrir o debate sobre formação de quadrilha.
Barroso propôs a redução a pena de um dos condenados. Tratando de um
cidadão que não desperta as mesmas paixões e até preconceitos típicos da
ação penal 470, pois vem a ser um doleiro do Rio de Janeiro, ligado ao
PP, o mais conservador da frente de aliados do governo Lula, Barroso
apontou para um caso flagrante de injustiça: penas diferentes para
cidadãos condenados por crimes iguais, a partir de responsabilidades
idênticas na mesma empresa.
As ponderações de Barroso ganharam força no plenário, conquistando a
maioria. Assim, pela primeira vez, desde que o debate sobre embargo de
declaração teve início, o STF admitiu e corrigiu um erro.
A intervenção de Zavaski sobre formação de quadrilha ocorreu nessa
situação. Até então, mesmo aceitando as ponderações de Barros, ele ficou
contra a ideia de reduzir penas. Mesmo assim, admitiu que, quando
ocorre um “erro de julgamento,” enfrenta-se uma questão que deve ser
resolvida de uma forma ou de outra. “Ou se beneficiou (um réu). Ou se
prejudicou.”
Ao constatar, contudo, que a maioria havia assumido outro
entendimento, foi além dos colegas e mudou um voto anterior. Considerou
que era possível caminhar em outra direção e aí foi para uma questão
mais relevante, da condenação por formação de quadrilha.
É sintomático que essa discussão tenha sido provocada, em dois
momentos, pelos dois novos integrantes do STF, nomeados depois que a
primeira fase do julgamento havia sido encerrada.
Há um motivo. Eles ficaram de fora de uma das situações mais estranhas do julgamento da ação penal 470.
Na dosimetria, fase de definição das penas – que é o debate essencial
dos recursos – o STF adotou um sistema faccioso de deliberação, no ano
passado. Decidiu, por maioria, que apenas os juízes que haviam condenado
um réu teriam direito a definir o tamanho de sua pena. Com isso,
ocorreu aquilo que se poderia imaginar.
Ao serem debatidas apenas por ministros convencidos da culpa de cada
acusado, as penas se tornaram artificialmente altas, sem refletir a
visão de conjunto de STF. Para compreender o que aconteceu, basta
imaginar, por hipótese, o caso de um réu condenado por seis votos a
cinco.
Se todos os juízes participam do debate de sua pena, mesmo aqueles
convencidos de sua inocência, sua condenação será mantida, mas o
resultado será seguramente mais equilibrado, mais próximo do que seria
uma opinião do conjunto dos juízes sobre um caso. (Não custa recordar
que o STF é um conjunto único, e não uma soma de indivíduos e suas
sentenças. Por isso os ministros se reúnem e debatem em vez de enviar
votos e deliberar pela internet).
Quando se recorda que o direito de definir as penas é, no fim das
contas, a expressão concreta do Direito e da Justiça, o ponto final que
concentra os direitos dos réus, os deveres dos juízes e, é claro, os
honorários dos advogados, pode-se ter uma ideia da distorção produzida.
Num debate fechado entre os já convencidos, ocorre aquilo que se vê
num centro acadêmico estudantil, numa assembleia de acionistas de
empresa e, data vênia, num encontro de juízes e suas togas negras. Temos
a opinião de apenas um grupo demarcado, o que favorece uma deliberação
com um viés pré-definido.
Mesmo condenados, os réus enquadrados por formação de quadrilha
tiveram quatro votos contra cinco a favor de sua inocência. Se esse
quadro equilibrado tivesse sido transferido para o debate sobre penas,
os réus teriam mais chances de receberem sentenças que refletiam a visão
do conjunto do STF sobre sua culpa. Quem se recorda dos debates da
dosimetria, dificilmente terá esquecido a impressão de que determinadas
penas foram agravadas não porque fossem as mais adequadas, mas porque se
temia que penas leves pudessem favorecer a prescrição quando se
pretendia garantir de qualquer maneira que os réus fossem para a cadeia.
"Reafirmo que não temos semideuses no Supremo", disse Marco Aurélio
Mello, ao apoiar Luiz Roberto Barroso. Falando de penas diferentes para
crimes identicos, apontou para "uma contradição que salta aos olhos e
que precisa ser corrigida."
Não se sabe até onde irá este debate. O Supremo enfrenta pressões de
outro lado. O ministério público voltou a falar que irá pedir a prisão
dos condenados, como se isso fosse possível sem que o Supremo revogasse
várias etapas na fase final do julgamento, que até hoje fazem parte da
jurisprudência da casa. Estamos falando da publicação dos acórdãos a
respeito dos embargos de declaração, que têm prazo de 60 dias para serem
elaborados, e do direito dos condenados apresentarem um novo embargo de
declaração a partir dos acórdãos. Há, também, o debate sobre embargos
infringentes, onde 12 condenados com quatro votos dissidentes têm o
direito – reconhecido até 2007 por Joaquim Barbosa – de pedir a revisão
de seu julgamento.
É neste debate que será possível descobrir o que aconteceu ontem.
Isto É
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