Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Você pode ter a opinião que quiser sobre os condenados da AP 470. Mas não pode dizer que se uniram para "o fim de cometer crimes"
O Supremo encara na
quarta-feira o debate sobre os embargos infringentes contra a condenação
de crime de quadrilha contra os réus da Ação Penal 470.
Conforme o artigo 288 do Código
Penal, quadrilha é uma associação de “três pessoas, em quadrilha ou
bando, para o fim de cometer crimes".
A condenação por este crime é inaceitável.
Você pode ter a opinião que quiser sobre os réus da AP 470. Pode dizer que eles cometeram delitos e mesmo crimes.
Mas não pode dizer que se articularam “para o fim de cometer crimes.”
A menos, claro, que pretenda criminalizar a atividade política.
A atividade dos condenados não era cometer crimes – mas fortalecer e consolidar um projeto político.
É uma diferença que
a maioria da população distingue com clareza. Essa distinção explica
as três vitórias eleitorais consecutivas obtidas pelo condomínio
Lula-Dilma e, a julgar pelas pesquisas eleitorais mais recentes, pode
lhe dar a quarta eleição em outubro, feito inédito desde a proclamação
da República, em 1889.
A menos que você
tenha uma visão preconceituosa sobre os valores do brasileiro, como
sugerem tantos antropólogos de botequim e até alguns de nossa academia,
irá reconhecer que isso acontece porque a população reconhece os
beneficios produzidos pelas mudanças de natureza social e econômica que
foram feitas no país. Aprova a distribuição de renda, a queda da
desigualdade, o menor desemprego em muitos anos de história.
É disso que estamos falando.
É errado dizer que erros e ilegalidades que podem ser apontados no processo eram o “fim” do projeto.
Embora seja possível concordar com a
noção de que mais vantajoso do que assaltar um banco é fundar um, uma
instituição financeira que cobra taxas indevidas de seus clientes deve
ser punida pelos desvios cometidos mas não vamos dizer que é uma
“quadrilha”, certo?
Uma empresa que não paga direitos
trabalhistas aos empregados deve ser acionada na Justiça mas não vamos
dizer que seus executivos formam uma “quadrilha”, não é mesmo?
Falar em quadrilha, na AP 470, não é
correto, quando a melhor prova do “fim” é um Land Roover de um acusado
de periculosidade afinal tão relativa que sequer foi incluído entre os
40 réus da AP 470.
Ou quando José Genoíno,
um dos principais chefes, conforme a denuncia, reside numa casa modesta
na Previdência, em São Paulo, comprada a prestações na Caixa Econômica.
Imagine que até hoje não
se falou num único projeto do governo Lula que tenha sido aprovado pela
“compra de votos.” Nenhum. Com toda sua retórica, o delator Roberto
Jefferson não citou um único caso.
Quem fala da Previdência
apenas demonstra que caiu num conto do vigário e desconhece um fato
político elementar. Com as mudanças na Previdência o governo Lula aderiu
às propostas de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.
O problema de seu governo, então,
não era conquistar votos adversários, que eram fartos, mas resolver o
que fazer com os descontentes do próprio PT. A maioria foi enquadrada e
disciplinada. Uma pequena parte fundou o PSOL.
Com tudo o que se disse e
se escreveu sobre a AP 470 não se produziu nada que se compare, por
exemplo, aos R$ 200 000 embolsados pelos parlamentares que venderam seus
votos para aprovar a emenda da reeleição em 1997.
“Aquilo sim era compra de
votos,” me disse o então deputado Pedro Correa (PP-PE), que testemunhou
a presença de banqueiros que, à saída do plenário, entregavam a senha
que os deputados convertidos deveriam apresentar a um doleiro.
Olha a verdadeira parábola do mensalão e sua quadrilha.
Dez anos depois da compra de votos da
emenda da reeleição, uma parte dos vendidos de 1994 foi atrás das
verbas do esquema do PT em 2004. Estavam quebrados. Aquela denúncia da
emenda da reeleição virou processo na Justiça e aqueles que foram
apanhados precisavam de dinheiro para pagar advogado.
Boa parte era do PP, o partido de
Pedro Correa, que era contra a emenda da reeleição. Queria impedir a
reeleição porque ela iria atrapalhar uma possível candidatura de Paulo
Maluf. Quase dez anos depois, quando Fernando Henrique já havia deixado o
Planalto, onde foi reeleito com ajuda daquela turma, o PP precisava de
dinheiro para pagar a defesa dos deputados.
Hoje, condenado na AP 470, de onde
seu partido tirou recursos para livrar seus colegas da cadeia, Pedro
Correa cumpre pena em Pernambuco.
Cadê a quadrilha? Quem faz parte dela?
Isso só acontece porque nossa
democracia mantem regras que estimulam o que é clandestino, irregular e
pouco transparente. Apesar de falhas, defeitos e imperfeições, a
democracia deve ser defendida de modo incondicional.
Não precisa de tutelas nem de salvadores de nenhum tipo.
As principais tentativas
sérias de reformar o sistema eleitoral, impedindo relações promíscuas
entre o financiamento dos partidos e o setor privado, foram bloqueadas
pelos que, agora, emitem suspiros horrorizadas com as falhas e desvios
com as quais conviveram alegremente por anos e anos.
Então chegamos a
uma segunda parábola. Impedimos toda e qualquer mudança nas regras do
jogo mas, quando o adversário está ganhando, fazemos uma seleção sob
medida para que sejam julgados e condenados sem que o direito a ampla
defesa tenha sido assegurado, como observou o insuspeito jurista Ives
Gandra Martins. Não damos dar sequer o direito ao desmembramento,
assegurado aos réus do PSDB-MG que não tinham direito ao foro
privilegiado -- situação de 34 dos 37 réus, entre os quais Dirceu e
Delúbio Soares
Repare em quem se
opôs com todas as forças ao debate no local adequado – o Congresso --
sobre a reforma eleitoral encaminhada depois dos protestos de junho.
Repare em quem dizia que o
governo (mas também a OAB, o movimento Ficha Limpa e outros) queriam
queria financiamento público exclusivo, com base no desempenho eleitoral
de cada legenda, porque o PT iria beneficiar-se com isso. (Não
pergunte, é claro, que outro critério, além do apoio popular, deveria
ser empregado neste caso).
Repare em quem disse que uma
reforma iria fortalecer as burocracias partidárias, fingindo desconhecer
que elas são a única forma de resistência aos mercadores que adquirem
parlamentares como quem compra automóvel numa concessionária.
Repare em quem se disse
indignado com a possibilidade da atividade política ser financiada pelo
dinheiro do contribuinte – como se não fosse claro que o dinheiro que
financia campanhas é devolvido, com lucros, pelos contratos favorecidos.
Cadê a quadrilha? Quem faz parte dela?
Isto É
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