sábado, 10 de maio de 2014

JUSTIÇA DO VISLUMBRE

Paulo Moreira Leite
 
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".

 Alegação de Joaquim Barbosa contra Dirceu naquilo que dicionários definem como "visão incompleta" dos fatos

      

Após meses de subterfúgios, silêncios, protelações e outras iniciativas que lhe permitiram  ganhar tempo, inclusive um surrealista pedido de monitoramento de ligações telefônicas do Planalto, o presidente do STF Joaquim Barbosa fez aquilo que – alguém duvida? -- sempre quis fazer.


      Negou a José Dirceu o direito de deixar o presídio para trabalhar.
      Um dia antes de anunciar a decisão, Barbosa revogou o direito ao trabalho externo de outros dois prisioneiros da AP 470 que o exerciam por autorização da Vara de Execuções Penais. 


      A coreografia paralela tem sua utilidade. 
Ninguém pode, com ela, acusar o presidente do STF de perseguir um prisioneiro em particular.
      Também serve como alerta para os demais prisioneiros da AP 470 que podem – ainda – trabalhar fora.  


       Os cuidados com a qualidade do teatro não escondem o principal: José Dirceu é um perseguido político e, cada movimento que Joaquim Barbosa fizer para esconder este fato só revela com mais clareza a injustiça que está sendo cometida. 
       O presidente do STF negou o direito de Dirceu sair para trabalhar a partir de dois argumentos questionáveis.


       O primeiro é alegar que a lei prevê que uma pessoa só pode cumprir o regime semi aberto depois de cumprir um sexto da pena. Isso é verdade. Mas a legislação diz também que o trabalho deve ser feito em colônias “agrícolas ou industriais”, que não existem na Papuda, o presídio para Dirceu foi enviado pelo próprio Joaquim Barbosa, quando estava condenado ao regime semi aberto. 


       Nessa situação, “o trabalho externo é admissível.” Tanto é assim que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – ultima instância do Judiciário antes do Supremo -- autoriza o trabalho nessas condições. 


        O outro argumento é que Barbosa “vislumbra” uma ação entre amigos no emprego oferecido a Dirceu pelo advogado José Grossi, um dos mais conceituados do país. Então é assim.
        Quando o presidente do STF “vislumbra” uma coisa, não precisa provar nem demonstrar. Basta “vislumbrar”,  isto é, ter uma “visão incompleta, imprecisa”, uma “compreensão parcial” de um fato, como diz o Houaiss, para chegar a suas conclusões e produzir uma decisão que envolve a liberdade e o direitos de uma pessoa?


       Vislumbre, esclarece Houaiss, é sinonimo de 'luz fraca." 
       Repare: não se acusa Dirceu de nenhuma falta disciplinar no presídio. Nenhum ato condenável, que poderia justificar a suspensão de um direito. Joaquim chega a alegar que Grossi nem sempre estará no escritório, o que pode dificultar o controle da atividade do prisioneiro. 


       Por esse raciocínio, é difícil imaginar que um prisioneiro sem diploma universitário possa vir a trabalhar de operário numa multinacional de 10 000 empregados cuja direção fica na Alemanha, concorda? Seja como for, o local foi examinado e aprovado previamente pelas autoridades responsáveis. 


      O debate, aqui, não envolve a culpa ou a inocência de Dirceu na AP 470.  Nem sobre o caráter político do julgamento. Sabemos que enquanto Dirceu e os outros foram colocados atrás das grades, o ex-ministro Pimenta da Veiga, fundador do PSDB, que embolsou R$ 300 000 de Marcos Valério, nada sofreu. Dirceu não embolsou 1 centavo.  Nenhuma prova dos autos indica que qualquer dirigente do PT, condenado na Ap 470, tenha colocado a  mão em tamanha quantia. Todos eles têm explicações melhores e mais sustentadas do que o ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso. Mas Pimenta está livre. Já  montou candidatura para disputar o governo de Minas Gerais.  


      Mas a questão neste exato momento é outra.
      Não é difícil perceber que uma sentença por vislumbre produz um vislumbre de Justiça.
      Isso porque nenhuma pessoa – mesmo um prisioneiro – pode ser destituída de direitos humanos elementares. O fato do STF ter considerado Dirceu culpado por corrupção ativa – e inocente do crime de quadrilha – não lhe retira nenhum outro direito além da perda da liberdade. 


      Mesmo submetido a uma disciplina rigorosa, os direitos de Dirceu e de todos prisioneiros do Estado estão resguardados pelos mesmos princípios que protegem o cidadão comum.
      Desde 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, diz-se no artigo nono que “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado”.
       Na Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, afirma-se que:
“Art. XI. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”


      Já na atual Constituição da República Federativa do Brasil, preserva-se o mesmo princípio:
“Art. 5 º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(...)
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”


 O que se define, aqui, são princípios básicos da Justiça, válidos em qualquer circunstância. Por isso um prisioneiro não pode ser humilhado, nem extorquido nem torturado. Isso é justiça.
    Política é outra coisa. Admite-se que seja feita por vislumbre desde que, como lembrou um dos pais da sociologia, a verdade política inclui o direito à mentira.
    Diz a Folha de S. Paulo, hoje:
     “O caso de Dirceu só chegou às mãos de Barbosa porque a Folha revelou que o ex-ministro teria utilizado um celular dentro da prisão e ele virou alvo de investigação.”
      É de chorar. A Folha “revelou” o que? 
      A conversa de celular entre o prisioneiro José Dirceu e um secretário do governo da Bahia é um caso típico de jornalismo declaratório e, nesse sentido, muito semelhante a Escola Base, aquele falso escândalo de 1994. Muito se falou e nada se demonstrou. Vislumbre verbal? 


      Em 1994, um delegado de polícia assoprou para repórteres que havia a suspeita de que crianças de uma escola de São Paulo sofriam abuso sexual por parte de diretores e professores. Nada se provou nem se demonstrou. Mas o delegado falou, os jornais reproduziram suas palavras e o escândalo se formou. Os donos da escola foram massacrados e reduzidos a miséria humana e material. Vinte anos depois, duas vítimas tiveram direito a R$ 100 000 de indenização cada uma. 


      Em 2014, a Folha revelou que um secretário do governo da Bahia disse a seus repórteres  que havia conversado pelo celular com  Dirceu. Era uma notícia – sem dúvida. Mas, quando se tentou encontrar fatos por trás das declarações, nada apareceu. O próprio secretario se desdisse. Nem precisava: a conta de seu telefone celular não registra nada que possa indicar uma conversa com Dirceu, ainda mais na Papuda.
     A investigação da direção do presídio nada demonstrou. Na falta de provas, partiu-se para o vislumbre total. 


     Em  vez de procurar  vestígios sobre a conversa entre duas pessoas, tentou-se monitorar as ligações telefônicas entre a Papuda e o Planalto.
     O curioso é que isso foi feito discretamente, sem chamar a atenção. Só se descobriu o que estava ocorrendo quando os advogados de Dirceu resolveram conferir os locais que deveriam ser monitorados. Foi assim que se constatou que estava em jogo, aí, o respeito a divisão de poderes e outras garantias constitucionais, que preservam a Presidência da República e mesmo o direito de milhares de cidadãos que poderiam ter suas ligações violadas. Diante do vexame, a pressão contra Dirceu depois da "revelação" chegou ao fim da linha. 


     Sem novos argumentos ou alegações, Joaquim Barbosa decidiu negar o pedido de trabalho externo. Empregou argumentos que poderia ter levantado 24 horas depois que os advogados protocolaram o pedido em nome de Dirceu. Não precisava ter esperado que o Ministério Público aprovasse o direito de Dirceu. Nem que a área psico-social desse seu acordo. 
      Fez isso três dias depois que o procurador geral da república Rodrigo Janot emitiu um parecer onde disse – sem apresentar nenhum fato novo – haver “indicativos claros” de privilégios e regalias para os prisioneiros da AP 470. Sim. “Indicativos.” 


     O mesmo Janot fez campanha para ser nomeado PGR por Dilma colocando-se como crítico do antecessor, Roberto Gurgel, que lançou a teoria do domínio do fato no julgamento. Estava indicando o que mesmo? 
    
     Deu para vislumbrar? 


Isto É

Nenhum comentário:

Postar um comentário