Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Alegação de Joaquim Barbosa contra Dirceu naquilo que dicionários definem como "visão incompleta" dos fatos
Após
meses de subterfúgios, silêncios, protelações e outras iniciativas que
lhe permitiram ganhar tempo, inclusive um surrealista pedido de
monitoramento de ligações telefônicas do Planalto, o presidente do STF
Joaquim Barbosa fez aquilo que – alguém duvida? -- sempre quis fazer.
Negou a José Dirceu o direito de deixar o presídio para trabalhar.
Um dia antes de anunciar a
decisão, Barbosa revogou o direito ao trabalho externo de outros dois
prisioneiros da AP 470 que o exerciam por autorização da Vara de
Execuções Penais.
A coreografia paralela tem sua utilidade.
Ninguém pode, com ela, acusar o presidente do STF de perseguir um prisioneiro em particular.
Também serve como alerta para os demais prisioneiros da AP 470 que podem – ainda – trabalhar fora.
Os cuidados com a
qualidade do teatro não escondem o principal: José Dirceu é um
perseguido político e, cada movimento que Joaquim Barbosa fizer para
esconder este fato só revela com mais clareza a injustiça que está sendo
cometida.
O presidente do STF negou o direito de Dirceu sair para trabalhar a partir de dois argumentos questionáveis.
O primeiro é alegar que a
lei prevê que uma pessoa só pode cumprir o regime semi aberto depois de
cumprir um sexto da pena. Isso é verdade. Mas a legislação diz também
que o trabalho deve ser feito em colônias “agrícolas ou industriais”,
que não existem na Papuda, o presídio para Dirceu foi enviado pelo
próprio Joaquim Barbosa, quando estava condenado ao regime semi aberto.
Nessa situação, “o
trabalho externo é admissível.” Tanto é assim que a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça – ultima instância do Judiciário antes do
Supremo -- autoriza o trabalho nessas condições.
O outro argumento é que
Barbosa “vislumbra” uma ação entre amigos no emprego oferecido a Dirceu
pelo advogado José Grossi, um dos mais conceituados do país. Então é
assim.
Quando o presidente do
STF “vislumbra” uma coisa, não precisa provar nem demonstrar. Basta
“vislumbrar”, isto é, ter uma “visão incompleta, imprecisa”, uma
“compreensão parcial” de um fato, como diz o Houaiss, para chegar a suas
conclusões e produzir uma decisão que envolve a liberdade e o direitos
de uma pessoa?
Vislumbre, esclarece Houaiss, é sinonimo de 'luz fraca."
Repare: não se acusa
Dirceu de nenhuma falta disciplinar no presídio. Nenhum ato condenável,
que poderia justificar a suspensão de um direito. Joaquim chega a alegar
que Grossi nem sempre estará no escritório, o que pode dificultar o
controle da atividade do prisioneiro.
Por esse raciocínio, é
difícil imaginar que um prisioneiro sem diploma universitário possa vir a
trabalhar de operário numa multinacional de 10 000 empregados cuja
direção fica na Alemanha, concorda? Seja como for, o local foi examinado
e aprovado previamente pelas autoridades responsáveis.
O debate, aqui, não
envolve a culpa ou a inocência de Dirceu na AP 470. Nem sobre o caráter
político do julgamento. Sabemos que enquanto Dirceu e os outros foram
colocados atrás das grades, o ex-ministro Pimenta da Veiga, fundador do
PSDB, que embolsou R$ 300 000 de Marcos Valério, nada sofreu. Dirceu não
embolsou 1 centavo. Nenhuma prova dos autos indica que qualquer
dirigente do PT, condenado na Ap 470, tenha colocado a mão em tamanha
quantia. Todos eles têm explicações melhores e mais sustentadas do que o
ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso. Mas Pimenta está livre. Já
montou candidatura para disputar o governo de Minas Gerais.
Mas a questão neste exato momento é outra.
Não é difícil perceber que uma sentença por vislumbre produz um vislumbre de Justiça.
Isso porque nenhuma
pessoa – mesmo um prisioneiro – pode ser destituída de direitos humanos
elementares. O fato do STF ter considerado Dirceu culpado por corrupção
ativa – e inocente do crime de quadrilha – não lhe retira nenhum outro
direito além da perda da liberdade.
Mesmo submetido a uma
disciplina rigorosa, os direitos de Dirceu e de todos prisioneiros do
Estado estão resguardados pelos mesmos princípios que protegem o cidadão
comum.
Desde 1789, na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, diz-se no artigo nono que “Todo
acusado é considerado inocente até ser declarado culpado”.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, afirma-se que:
“Art. XI. Toda pessoa acusada
de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a
culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento
público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias
necessárias à sua defesa.”
Já na atual Constituição da República Federativa do Brasil, preserva-se o mesmo princípio:
“Art. 5 º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:(...)
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”
O que se define,
aqui, são princípios básicos da Justiça, válidos em qualquer
circunstância. Por isso um prisioneiro não pode ser humilhado, nem
extorquido nem torturado. Isso é justiça.
Política é outra coisa.
Admite-se que seja feita por vislumbre desde que, como lembrou um dos
pais da sociologia, a verdade política inclui o direito à mentira.
Diz a Folha de S. Paulo, hoje:
“O caso de Dirceu só chegou às mãos de Barbosa porque a Folha revelou que o ex-ministro teria utilizado um celular dentro da prisão e ele virou alvo de investigação.”
É de chorar. A Folha “revelou” o que?
A conversa de celular
entre o prisioneiro José Dirceu e um secretário do governo da Bahia é um
caso típico de jornalismo declaratório e, nesse sentido, muito
semelhante a Escola Base, aquele falso escândalo de 1994. Muito se falou
e nada se demonstrou. Vislumbre verbal?
Em 1994, um delegado de
polícia assoprou para repórteres que havia a suspeita de que crianças de
uma escola de São Paulo sofriam abuso sexual por parte de diretores e
professores. Nada se provou nem se demonstrou. Mas o delegado falou, os
jornais reproduziram suas palavras e o escândalo se formou. Os donos da
escola foram massacrados e reduzidos a miséria humana e material. Vinte
anos depois, duas vítimas tiveram direito a R$ 100 000 de indenização
cada uma.
Em 2014, a Folha revelou
que um secretário do governo da Bahia disse a seus repórteres que havia
conversado pelo celular com Dirceu. Era uma notícia – sem dúvida. Mas,
quando se tentou encontrar fatos por trás das declarações, nada
apareceu. O próprio secretario se desdisse. Nem precisava: a conta de
seu telefone celular não registra nada que possa indicar uma conversa
com Dirceu, ainda mais na Papuda.
A investigação da direção do presídio nada demonstrou. Na falta de provas, partiu-se para o vislumbre total.
Em vez de procurar
vestígios sobre a conversa entre duas pessoas, tentou-se monitorar as
ligações telefônicas entre a Papuda e o Planalto.
O curioso é que isso foi
feito discretamente, sem chamar a atenção. Só se descobriu o que estava
ocorrendo quando os advogados de Dirceu resolveram conferir os locais
que deveriam ser monitorados. Foi assim que se constatou que estava em
jogo, aí, o respeito a divisão de poderes e outras garantias
constitucionais, que preservam a Presidência da República e mesmo o
direito de milhares de cidadãos que poderiam ter suas ligações violadas.
Diante do vexame, a pressão contra Dirceu depois da "revelação" chegou
ao fim da linha.
Sem novos argumentos ou
alegações, Joaquim Barbosa decidiu negar o pedido de trabalho externo.
Empregou argumentos que poderia ter levantado 24 horas depois que os
advogados protocolaram o pedido em nome de Dirceu. Não precisava ter
esperado que o Ministério Público aprovasse o direito de Dirceu. Nem que
a área psico-social desse seu acordo.
Fez isso três dias depois
que o procurador geral da república Rodrigo Janot emitiu um parecer
onde disse – sem apresentar nenhum fato novo – haver “indicativos
claros” de privilégios e regalias para os prisioneiros da AP 470. Sim.
“Indicativos.”
O mesmo Janot fez campanha
para ser nomeado PGR por Dilma colocando-se como crítico do antecessor,
Roberto Gurgel, que lançou a teoria do domínio do fato no julgamento.
Estava indicando o que mesmo?
Deu para vislumbrar?
Isto É
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