Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Servidores da Papuda acusam Ministério Público de promover insegurança no presídio e pedem afastamento de seis procuradoras
A reportagem da VEJA sobre a vida de José Dirceu na
Papuda, sem apresentar um fato concreto, sem conferir um boato junto a
quem poderia confirmar ou desmentir o que se pretendia publicar, é
aquilo que todos nós sabemos. Não é séria nem respeitável.
Não passa de um esforço redundante para acrescentar
uma nova camada de boatos (no juridiquês da Papuda eles se chamam
“supostas irregularidades noticiadas”) para prejudicar os réus da AP
470, esforço redobrado depois que eles conseguiram vitórias importantes,
como o reconhecimento do erro no crime de formação de quadrilha e
lavagem de dinheiro.
Quem está sendo chamado a dar explicações e prestar esclarecimentos, na verdade, é o Ministério Público do Distrito Federal.
Num documento assinado pela Associação de Servidores
do Sistema Penitenciário do Distrito Federal, seis integrantes do MP –
todas são mulheres, por concidência -- são acusadas de atuar contra a
ordem na sistema prisional.
O pedido foi encaminhado ao Conselho Nacional do
Ministério Público, o órgão responsável por examinar, julgar e punir
desvios de comportamento por parte dos procuradores.
A acusação diz que elas estimulam a “publicação de fatos ou atos” que perturbam a “paz prisional ”.
A base é o artigo 198 da lei de execução penal, que
diz que “é proibido ao integrante dos órgãos de execução penal e ao
servidor, a divulgaçao de ocorrência que perturbe a segurança e a
disciplina dos estabelecimentos …”
Conforme o documento, as procuradoras ajudam a
promover a desordem entre os presos e suas famílias através da
reproducão, no site do próprio Ministério Publico, de rumores e boatos
que não foram comprovados nem confirmados. Através disso, conclui-se
pela leitura do documento, cria-se um ambiente artificial de agitaçao e
descontentamento entre a população encarcerada.
Sabemos como isso começa. Sem cometer a deselegância
de perguntar quem assopra essas coisas (fatos? Hipóteses? Delírios?)
para jornalistas, estamos falando de suspeitas e hipóteses divulgadas
por jornais e revistas com a técnica marota de sempre.
A partir de depoimentos anonimos, verbos no tempo
condicional, fontes desconhecidas e outros recursos típicos de quem sabe
que pode estar embarcando numa fria, publica-se uma reportagens
recheada de (fatos? Hipóteses? Fantasias? Delírios? ) que seriam graves
se fosse demonstrado que são verdadeiros.
Em seguida, essa reportagem é reproduzida no site do
ministério publico do DF – mais uma vez, sem qualquer checagem para
confirmar sua veracidade.
Numa terceira etapa, estes “fatos” -- imaginários ou
não -- aterrisam em documentos oficiais e são usados para prejudicar os
réus e pressionar as autoridades do sistema prisional.
Em suas petições, o juiz Bruno Ribeiro, da Vara de
Execuções Penais, cobra investigações para apurar “supostas
irregularidades noticiadas”, definição cujo sentido desafia os
estudiosos do direito e da língua portuguesa.
Convém não esquecer uma realidade elementar. Tudo o
que é um suposto ser também é um suposto não-ser, ensina-se no jardim
de infancia da filosofia.
Se as irregularidades são apenas supostas, podemos
supor, pela simples lógica, que elas também podem ser “regularidades “ –
e, talvez, nada de errado esteja acontecendo, como se poderia pensar,
supostamente.
O único elemento consistente no pedido de
investigação reside no fato de as “supostas irregularidades,” terem sido
“noticiadas. ”
Uma notícia, como se sabe, pode ser produzida a
partir de uma apuração cuidadosa e responsável. Mas também pode ir para o
papel sòmente porque lá pelas 19 horas um editor de jornal
clicou “salvar” e depois “enviar ” antes de mandar um texto para o
leitor. O que isso tem a ver com Direito, com a Justiça, com a Liberdade
de cada um? Nada.
Jornais e revistas erram todos os dias. Erram sem
querer e erram por querer. Podem ter interesse na verdade, mas também
ganhar com a mentira. São empresas comerciais e também atuam
politicamente.
Têm interesses privados nem sempre transparentes, agendas ocultas e um padrão cada vez mais frágil de proteger.
Também contam com a proteção de um regime legal que
não estimula posturas responsaveis. As vítimas de seus erros – e também
falsidades – não tem direito de resposta. Empresas de faturamento
bilionário são levadas a pagar – quando isso acontece – multas
irrisórias.
Um exemplo recente. Depois de fugir durante oito
anos de suas responsabilidades pela divulgação de uma denúncia
irresponsável sobre contas de ministros no exterior, a mesma VEJA que
agora denuncia Dirceu está sendo chamada a pagar uma multa de R$ 100 000
para a família de uma das vítimas, Luiz Gushiken.
Lê-se na sentença assinada pelo desembargador
Antonio Velinils que a revista “não tinha prova consistente” para dizer
o que disse. Fez uma reportagem sem oferecer “um único indício de
confiança.” Em vez de assumir uma postura prudente, como a situação
recomendava, preferiu “insinuar que as informações eram, sim,
verdadeiras.”
Mais tarde, quando o caso chegou a Justiça, a
revista tentou justificar-se sem conseguir apresentar um único argumento
aceitável para explicar o que fez, Usando de subterfúgios e truques de
linguagem, construiu uma “falácia de doer na retina,” acusa o
desembargador, que ainda concluiu que VEJA “abusou da liberdade de
imprensa.”
É disso que estamos falando. Abusos. Os presos não
constestam, na Papuda, as penas que receberam. Querem cumprir o que a
lei determina. Lutam por este direito – o que dá uma ideia do absurdo
que enfrentam.
Mas não é isso o que acontece. A repetição de
pedidos de investigação das “supostas irregularidades noticiadas” está
longe de configurar um esforço para se cumprir a obrigação de apurar e
investigar todo indício de crime, o que seria natural.
O que se faz é criar um circulo vicioso. Lembra o fatiamento que Joaquim Barbosa inventou para apresentar a denúncia da AP 470?
Cada suposição leva a outra, que leva a seguinte,
depois a próxima, e mais uma … num calderão de “irregulardades
noticiadas” que não precisam ser provadas. Basta que em seu conjunto
formem uma nuvem política, uma conviccão maligna que pode levar muita
gente acreditar que a Papuda é um presidio inseguro, instável, perigoso –
e que o jeito é mandar os réus da AP 470 para um presidio federal, como
um deputado do Solidariedade pretende fazer.
Claro que não seria uma medida fácil. Como recorda a
Associaçao dos Servidores, a Papuda encontra-se entre os melhores
presidios do país:
“Há mais de uma década não temos rebelião; nunca
tivemos decapitação de seres humanos; há mais de seis anos não há
homicídios intramuros; há inexistência de faccões criminosas…”
A verdade, porém, é que tudo tornou-se perigosamente
possível depois que Joaquim Barbosa confessou que havia manipulado as
penas da AP 470 para conseguir condenações mais duras, em regime
fechado. Assim, sem retratar-se.
Não importam os fatos, nem mesmo a lei. Importa a vontade do juiz.
Lembra da frase “A constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é”?
Quando uma “suposta irregularidade noticiada” não
chega aonde se imagina que deveriam chegar, encontra-se um atalho para
manter a pressão.
Foi assim com o telefonema de Dirceu. Nada indica que tenha ocorrido. Não se provou.
Em vez de se questionar a denúncia, o que se
questiona é a investigação. A tese, agora, é que foi “ atípica. “ Por
que não admitir uma “suposta denuncia” ou mesmo uma “denuncia
suposta”?
O que está claro é que as “supostas irregulariades
noticiadas” foram investigadas, apuradas – e só tinham valia como
cortina de fumaça para estigmatizar os presos, reduzir seus direitos e
impedir a progressão de suas penas.
As primeiras foram as célebres visitas em dias
especiais. Elas não são uma raridade na Papuda, mas uma tradição,
oferecida a todo preso considerado “vulnerável.” Foi assim que, por oito
anos, os familiares dos jovens de classe media que assassinaram o índio
Galdino, em Brasília, visitavam seus filhos numa data diferente daquela
reservada aos parentes de outros internos. Isso porque havia, entre
eles, não só ministros de Estado, mas também um juiz federal, motivo
para se tentar prevenir reações imprevistas por parte da massa
carcerária.
Em nome do “combate ao privilégio” todas as visitas
em caráter especial da Papuda foram suspensas no final de 2013. Em
função disso, “muitos pais e familiares não se arriscam a visitar seus
entes, junto a massa carcerária,” diz o documento dos servidores. “Fato
lamentável!”, dizem os servidores.
Outro privilégio “suposto” foi a feijoada em lata
que Deludio e duas dezenas de colegas de sua ala no Centro de Progressão
de Pena comeram. Num local onde há um fogareiro, panelas e uma cantina
que vende até costelinha, o que se gostaria que presioneiros fizessem?
Pedissem para serem algemados?
O que se vê, aqui, é um fato analisado e resolvido através de uma sentença do Superior Tribunal de Justiça:
“Foge ao limite do controle jurisdicional o juizo de
valoração sobre a oportunidade e conviência do ato administrativo,
porque ao judiciário cabe unicamente analisar a legalidade do ato, sendo
vedado substituir o Administrador Público.”
O que se diz aí é que mesmo cidadãos condenados a
viver atrás das grades tem direitos que devem ser respeitados, o que
inclui, inclusive, o respeito pela divisão de poderes que caracteriza o
regime democrático.
Não é preciso acrescentar mais nada, certo?
Num país que assiste a passagem dos 50 anos do golpe
de 64, é bom refletir sobre o que acontece com seus prisioneiros. Não
custa recordar que a face mais horrenda da ditadura foi construída em
seus cárceres.
Isto É
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