Colunista do Globo diz que esquerda não existia na
época, havia apenas uma "revolução verbal" e "imaginária" e por isso
houve o golpe; "eu acho que 64 foi 'bom' para nos acordar. Foi uma
porrada necessária. 64 abriu cabeças. Aprendemos muito", escreve Arnaldo
Jabor
247 - Em sua coluna no jornal O Globo nesta
terça-feira 25, Arnaldo Jabor comenta a inexistência, segundo ele, da
esquerda em 1964. "Havia apenas um sindicalismo de pelegos e dependentes
do presidente, que deu a grande festa de 13 de março", define. Por isso
o golpe aconteceu, afirma. Para Jabor, a intervenção militar "foi uma
porrada necessária", que serviu para "acordar" e "abrir as cabeças".
Leia seu artigo no site do jornal ou abaixo:
Éramos uma ilusão em 64
A ideologia "revolucionária" era um ensopadinho feito de JK, Marx, Getúlio, Iseb e sonho
O golpe de 64 aconteceu porque nós não existíamos. Éramos uma ilusão.
A esquerda era uma ilusão no Brasil (já imagino as "cerdas bravas do
javali" se eriçando em alguns cangotes). Pois não existíamos em 64. Mas,
existia o quê? Existia uma revolução verbal. A ideologia
"revolucionária" era um ensopadinho feito de JK, Marx, Getúlio, Iseb e
sonho. Existia uma ideologia que nos dava a sensação de que o "povo do
Brasil marchava conosco", um wishful thinking de que éramos o " sal da
terra".
Havia a crendice de que nossos inimigos estavam todos "fora" de nós e
fora das estruturas políticas arcaicas (até hoje é difícil arrancar
isso de dentro das cucas fóbicas ). Existia um "bacalhau português" em
nosso discurso, um forte ranço ibérico em nossa postiça ideologia
"franco-alemã": o amor ao abstrato, ao uno totalizante. A população nem
sabia que existíamos. Não havia nenhuma base material, econômica ou
armada, "condições objetivas" para qualquer revolução. Por trás de
nossas utopias, o Brasil escravista e patrimonialista dormia a sono
solto. Nós éramos uma esquerda imaginária, delegando ao Estado a tarefa
de fazer uma revolução contra o Estado. Como sempre em nossa história,
até nas revoluções precisamos do governo.
Havia apenas um sindicalismo de pelegos e dependentes do presidente,
que deu a grande festa de 13 de março (o comício da Central, com tochas
da Petrobras). Eu estava lá, olhando para Thereza Goulart, linda de
vestido azul e coque anos 1960, e vendo depois, com calafrio na espinha,
as velas acesas em protesto em todas as janelas da chamada classe média
"reacionária" do Flamengo até Ipanema. Essa era a verdadeira "sociedade
civil" que acordava. Hoje, acho que o único que sacava a zorra toda era
o próprio Jango, o mais brasileiro, mais sábio e que preferiu o exílio,
já que não pôde segurar o trem, entre os gritos de Darcy Ribeiro
falando do "Brasil, nossa Roma tropical!". Havia uma espécie de
"substituição de importações dentro da alma": a crença de que éramos
"especiais" e de que podíamos prescindir do mundo real, fazendo uma
revolução pela vontade mágica. Mas, existia o quê, de concreto?
Existiam os outros. Os "outros" surgiram do nada. Surgiram categorias
esquecidas pelos "ideólogos". O óbvio de nossa cultura pipocou do
"nada" em 64. Fantasmas seculares refloriram. Surgiu uma classe média
reacionária e burra, que sempre esteve ali. Surgiu um exército ignorante
e submisso às exigências externas e repressivas da Guerra Fria na
América Latina.
A sensação que eu tive foi de acordar de um sonho para um pesadelo.
Um pesadelo feito de milicos grossos, burrice popular e pragmatismo de
gringos do "mercado". (Foi inesquecível o surgimento de Castelo Branco,
feio como um ET de boné verde na capa do "O Cruzeiro"). Um pesadelo
feito de realidade.
E agora, outra "heresia" (mais cerdas eriçadas): eu acho que 64 foi
"bom" para nos acordar. Foi uma porrada necessária. 64 abriu cabeças.
Aprendemos muito. Ficamos conhecendo a ignorância do povo (que
idealizávamos); descobrimos que a resistência reacionária de minhas tias
era igual à dos usineiros e banqueiros. Descobrimos a burocracia
endêmica, a "burguesia" nacional adesista a qualquer grana externa (que
achávamos "progressista"). Descobrimos o óbvio do mundo.
Foi o início de uma possível maturidade. Despertamos para a bruta mão
do money market, que precisava nos emprestar dinheiro, para que o
Estado pós-getulista-verde-oliva avalizasse a instalação das
multinacionais aqui. Ou vocês acham que iam nos emprestar US$ 150
bilhões para o Jango fazer a reforma agrária com o Darcy?
Aprisionaram-nos para contrairmos a dívida como, 20 anos depois, nos
libertaram para pagá-la. 64 ensinou que o buraco é muito mais embaixo.
Em 64, vimos que a esquerda tinha "princípios" e "fins", mas não tinha
"meios".
Em 64, descobrimos que o mundo anda sozinho e independe de
conspirações individuais. Claro que a CIA armou coisas com direitistas
daqui, mas foram apenas os parteiros de um "desejo material da produção"
no momento capitalista do mundo. Nossos paranoicos acham que o
"neoliberalismo" é uma trama da IBM e da Microsoft em Washington.
1964 foi um show de materialismo histórico, ali, na bucha. Mas
ibérico não gosta de ver estas coisas. E logo tapamos os olhos e nos
consideramos as "vítimas" da ditadura, lutando só pela "liberdade"
formal. E não enxergávamos que faltava liberdade "real" em nossas
instituições políticas de 400 anos. Com 64, poderíamos ter descoberto
que um país sem sociedade organizada morre na praia. E deveríamos ter
descoberto que não adianta nada analisar os "erros" de nossa esquerda
"revolucionária". O conceito de "esquerda" no Brasil tem de ser
repensado ab ovo, pois é impossível trancar a complexidade de nossa
formação nacional numa falange unificada. 1964 devia nos lembrar que uma
esquerda aqui tem de ser dialogal, atenta aos vícios culturais do país,
complexa e libertada da "ganga impura" do patrimonialismo tradicional
do Sarney ou do novo patrimonialismo de Estado que o PT inventou.
Como os EUA lutaram contra o racismo, Vietnã, direitos civis, temos
de lutar dentro da democracia. Nossa formação nos condena à democracia. O
tempo não para, e as forças produtivas do mundo continuarão agindo
sobre nossa resistência colonial que o PT preserva.
Quando entenderemos que a verdadeira revolução brasileira tem de ser
endógena, democrática, porque as instituições seculares são a causa de
nosso atraso e fracasso? As velhas palavras de ordem continuam
comandando o governo atual. O medo à "globalização neoliberal" (ah...
palavras mágicas da hora...) desloca o alvo do problema: o verdadeiro
inimigo de uma nova esquerda deve ser a velha estrutura oligárquica e e
burocrática do país, alojada no bunker do Estado. E aí vai o terceiro
eriçamento das "cerdas bravas do javali": o Estado não é a solução; o
Estado é o problema. Só um banho de "liberalismo" pode ajudar a sanear
esta "bosta mental sul-americana", como disse Oswald de Andrade.
Brasil 247
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