Sociedade e instituições democráticas vão
rejeitando, cada vez mais, os abusos e as ilegalidades perpetrados ao
longo do processo, escreve Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania; em
artigo, ele ressalta que, apesar da resistência da imprensa, "a gritaria
dos setores mais racionais contra um processo espúrio ameaça tornar-se
ensurdecedora"; irregularidades tornaram-se ainda mais graves com as
recentes decisões contra José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoino; "Há
cerca de um ano, a reversão dessa anomalia democrática parecia
impossível. Hoje, ainda parece improvável. Mas cada vez menos...",
afirma Guimarães
Por Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania
A cada dia que passa avolumam-se os indícios de que, como em uma
espécie de reação biológica a infecções, a sociedade e as instituições
democráticas vão rejeitando, pari passu com o mundo jurídico e com as
instituições (imprensa incluída), os abusos e as ilegalidades
perpetrados ao longo do julgamento da Ação Penal 470, vulgo julgamento
do mensalão.
Ainda que a opinião publicada – que se pretende opinião pública –
ainda resista, ainda que grupos de interesse continuem refestelados e se
regozijando com a condenação retórica e formal de cidadãos brasileiros à
prisão sem o necessário amparo de provas, a gritaria dos setores mais
racionais contra um processo espúrio que a todos preocupa vai aumentando
de volume e já ameaça tornar-se ensurdecedora.
Há cerca de um ano, a reversão dessa anomalia democrática parecia
impossível. Hoje, ainda parece improvável. Mas cada vez menos...
Ainda assim, seguem ruidosos os entusiastas de condenações seletivas
de pessoas ao cárcere, ou seja, de condenações levadas a cabo sob
critérios forjados na medida para alguns, como em uma espécie de exceção
institucional que se pensava ser possível aplicar sem que, no entanto,
tal golpe na democracia afetasse mais seriamente o organismo
institucional.
Como diriam os mais jovens, porém, não está "rolando". A persistência
dos que se dispõem a resistir, aliás, ganha simbolismo através de um
grupo de cidadãos que acampou diante do Supremo Tribunal Federal, em
Brasília, a fim de protestar contra condenações sem provas. E que
prometem não sair de lá até que seja vislumbrável alguma luz no fim do
túnel.
Esses cidadãos têm vivido um verdadeiro inferno. Privações, ameaça de
violência de grupos radicais, mas não arredam pé. Algumas horas antes
de este texto se escrever sozinho, cerca de 20 homens atacaram o
acampamento diante do STF e, munidos de porretes, destruíram barracas,
agrediram até mulheres e foram embora.
Todavia, os que denominam seu acampamento diante do STF como "trincheira", prometem persistir.
A esses, juntam-se juristas de renome, advogados, filósofos,
jornalistas da dita "mídia alternativa", entre muitos outros. Começaram
sozinhos essa resistência, mas agora ganham a companhia de novos
ministros do Supremo que também enxergam os malfeitos na primeira fase
do julgamento do mensalão (em 2012) e que já estão reformando decisões.
Como se fosse pouco, até na grande mídia vai se tornando comum
encontrar textos opinativos e até reportagens que, até há alguns meses,
eram censurados. Na semana passada, um desses textos causou rebuliço.
No jornal O Estado de São Paulo, um repórter denúnciou que o ministro
Joaquim Barbosa e alguns de seus pares teriam exagerado na dosimetria
das penas dos condenados pelo julgamento do mensalão de modo a que
fossem confinados a regime fechado. Essa matéria, somada à rejeição da
tese de quadrilha, constitui-se em uma bomba de efeito retardado.
Contudo, um texto publicado no primeiro dia útil desta semana na
Folha de São Paulo excede tudo o que a grande imprensa, de uns tempos
para cá, passou a publicar em termos de questionamento ao julgamento do
mensalão e, assim, expõe ao grande público talvez o que seja a maior
prova da ilegalidade desse processo.
O colunista da Folha Ricardo Melo escreveu, no texto "Começar de
novo" (3/3), pedido de que o julgamento seja refeito. Mas não foi só:
ainda discorreu sobre um tema que, até então, estava proibido na grande
imprensa. Escancarou informações sobre o inquérito 2474, conduzido
paralelamente à investigação que originou a AP 470.
A grande maioria do público dos grandes jornais deve ter ficado
perturbada e desorientada ao ler na coluna de Melo na Folha que "O
inquérito 2474 não é um documento qualquer" e que está "Repleto de
laudos oficiais" e "Investigações da Polícia Federal" que permitiriam
aos réus do mensalão "Rebater argumentos decisivos para sua condenação".
"Como assim?", devem estar se perguntando os que só se informam pela grande mídia...
Primeiro, ficam sabendo, através do Estadão, que o "heroico" Joaquim
Barbosa, com a colaboração exclusiva dos juízes que condenaram os réus,
manipulou a dosimetria das penas. Agora, os leitores de uma Folha ficam
sabendo que há um segundo inquérito que pode conter provas, por exemplo,
de que não houve dinheiro público envolvido no mensalão.
Enquanto os bate-paus (contratados e espontâneos) dos partidos
antipetistas continuam repetindo, pavlovianamente, palavras de ordem
(petralhas, mensaleiros, bandidos etc.) valendo-se das condenações em um
processo tão questionado a fim de desqualificar qualquer argumentação
contrária, o julgamento da Ação Penal 470 começa a fazer água.
Barbosa, Gilmar Mendes, o PSDB, o DEM, o PPS e os setores da grande
mídia que ainda apostam na sobrevivência daquele julgamento de exceção,
entre outros, já admitem que, após todos esses fatos e a queda da tese
de formação de quadrilha, "um processo" pode estar começando.
Nota: eles se referem a processo de anulação do julgamento do mensalão.
Diante disso tudo, uma reflexão: muitos, com boa dose de razão,
questionam a democracia brasileira. Para os mais radicais, em nosso país
não haveria democracia de verdade. Particularmente, discordo. O que é a
democracia se não o fenômeno que está minando, paulatinamente, um
julgamento viciado como o da AP 470?
Democracia, antes de tudo, é a possibilidade de se dizer o que se
quiser a quem quiser ouvir. Muitas vezes, não chega a ser o ideal.
Alguns usam mal esse direito, como os que pregam na internet até golpes
de Estado. Abertamente. Porém, esse direito também serve para divulgar
trapaças como as praticadas por setores do STF ao longo do julgamento do
mensalão.
Finalizo, pois, recorrendo a um antigo clichê, mas que, neste
momento, parece fazer mais sentido do que qualquer outra coisa: a
democracia seguramente não é o melhor sistema de organização política,
mas ainda não inventaram outro melhor. Seu grande mérito é impedir que
qualquer pensamento ou fato sejam sonegados. Não é pouco.
Brasil 247
Nenhum comentário:
Postar um comentário