terça-feira, 11 de março de 2014

Miguel do Rosário: “O mensalão e as três cabeças de Cérbero”

“O que fazer quando um juiz, ou um colegiado de juízes, condena uma pessoa sem base em provas, ou que é pior, contra as provas?” 


Uma das razões pelas quais eu me interesso tanto pela Ação Penal 470 é porque eu sempre fui um aficcionado por filmes e livros sobre polêmicas judiciais.
Perdi a conta dos filmes que assisti, em alguns casos inúmeras vezes cada um, sobre processos e julgamentos. E devorei vários romances de Jonh Grisham, um ex-advogado que se tornou um dos escritores mais vendidos nos EUA, sempre com histórias envolvendo questões judiciais.
É uma das razões, não a principal.


A razão principal, naturalmente, é a suspeita de que o Brasil viveu mais um golpe político, travestido de ação penal.
Nas histórias sobre polêmicas judiciais, o suspense recai sempre sobre o arbítrio de um julgamento. Repare no termo: arbítrio. A raíz é a mesma de árbitro, sinônimo de juiz. O juiz é um árbitro, e de sua decisão decorrerá um arbítrio, para o bem ou para o mal.


Uma decisão judicial é quase sempre uma violência. Pegue-se o exemplo de Pinheirinho. Uma juíza decidiu expulsar mais de 6 mil pessoas de onde moravam há anos, determinando que suas casas fossem completamente destruídas por máquinas de demolição. A razão não era a construção de uma nova estrada. Nem o espaço fora requisitado para obras de um grande evento esportivo. Nada disso. O terreno estava abandonado antes, e continua abandonado hoje, e pertencia a um notório fraudador do mercado financeiro nacional, Naji Nahas.


Não houve nenhuma campanha na grande imprensa em favor das populações de Pinheirinho. A blogosfera uniu-se, como poucas vezes se viu, em torno do tema. Mas não adiantou. As famílias não apenas foram expulsas, como agredidas e depois amontoadas sem higiene num galpão erguido às pressas nas redondezas.


Digo tudo isso para ilustrar que o judiciário não é perfeito. Ele reflete os valores das camadas mais ricas da sociedade, aqueles que detêm os principais meios de comunicação.
O povo consegue eleger alguns representantes, nunca juízes. A prova disso novamente está em Pinheirinho, ou melhor, em São José dos Campos, onde o prefeito que apoiou a remoção da comunidade, que era do PSDB, perdeu as eleições seguintes para um prefeito do PT, que agora está comandando a construção de uma nova grande comunidade para abrigar os expulsos de Pinheirinho, com apoio do governo federal.


Por que há tantos filmes e livros de ficção sobre o tema? Por que em cada decisão judicial há um suspense. Como dependemos de um fator subjetivo, a consciência do juiz, ou dos jurados, é evidente que existe sempre o risco de um erro.
Por isso, a questão das provas é tão fundamental. Porque juízes podem errar. Mesmo com provas abundantes à sua disposição, eles podem errar, porque as provas também enganam. Há vários filmes em que a pessoa é presa porque se encontraram suas impressões digitais na arma do crime, só que ela não era culpada. Ela apenas tinha pego na arma, depois do criminoso, ou, em alguns casos, foi vítima de uma armação.


Quando se condena uma pessoa com base em provas, contudo, reduz-se em muito a probabilidade de erro. E se há erro, não se pode culpar tanto assim o juiz ou o júri.
Hoje em dia, após a experiência traumática do julgamento do mensalão, onde assistimos, estarrecidos, as mais altas autoridades do judiciário pronunciarem barbaridades medievais como: “não tenho provas para condenar Dirceu, mas a literatura me permite fazê-lo”, hoje em dia eu sinto uma alegria maligna ao assistir um filme em que um assassino é solto por “falta de provas”.


Por que alegria maligna? Maligna porque sabemos que o sujeito é um assassino, então é um sentimento ambíguo, quase doentio. Alegria porque é um testemunho de rigor democrático no cumprimento da lei. Não importa se o sujeito tem nariz de assassino, orelha de assassino, mãos de assassino, voz de assassino. Não importa se ele tem um histórico lamentável de roubos, tráfico, estelionato, etc. Se não houve provas do homicídio, ele é absolvido. Ponto final. Não se pode condenar ninguém porque isso seria “melhor para a sociedade”, o que é uma fórmula fascista.
Entretanto, o que fazer quando um juiz, ou um colegiado de juízes, condena uma pessoa sem base em provas, ou que é pior, contra as provas?


O que fazer quando nos deparamos com um monstro de três cabeças, qual o Cérbero pintado por Blake, representando STF, Procuradoria e Mídia, trabalhando juntos para aplicar um golpe político?


Este é o caso dos réus do mensalão. E volto a mencionar de uma das figuras mais controvertidas desse escândalo: Henrique Pizzolato. Digo controvertida porque Pizzolato foi o cordeiro perfeito a ser imolado: era petista, mas sem ligação com nenhuma corrente, portanto desde sempre isolado dentro do partido; colecionava adversários dentro do BB, porque sempre fora o “petista” dentro de uma instituição dominada por tucanos e/ou servidores que acreditam no Globo (o que para mim é a mesma coisa). A vitória de Lula, que alçou Pizzolato ao cargo de diretor de marketing, certamente não contribuiu para aplacar a inveja de seus colegas tucanos. Um deles era Roberto Messias, hoje secretário-executivo da Secom, à frente da qual ajudaria, com verbas e “mídia técnica”, a fazer o cerco midiático contra os “mensaleiros”.


Alguns membros da cúpula do PT, que passou anos lavando as mãos para todos os réus do mensalão, certamente com medo de uma contaminação que prejudicasse eleitoralmente o partido, hoje começam a se movimentar, embora timidamente, quase à susto, em defesa de Pizzolato.


Há pouco tempo, por exemplo, jamais imaginaríamos ler uma declaração tão enfática de um quadro tão graduado do PT, como esta que Ricardo Berzoini, deputado federal por São Paulo, deu em favor de Henrique Pizzolato, alguns dias atrás. Berzoini se manifestou em favor de uma petição online para que a Itália não extradite Pizzolato sem antes ler com muita atenção os autos do processo do qual ele é vítima.


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Berzoini não é apenas um deputado federal pelo PT. É um prestigiado quadro político, ex-ministro no governo Lula, e um ex-funcionário de carreira do Banco do Brasil, que conhece profundamente a burocracia da instituição.
*
Confrontada pelos questionamentos contra a Ação Penal 470, a nossa grande imprensa esquece todo o seu discurso sobre isenção e imparcialidade,  e tenta tratar a questão como fait accompli. Arrumaram até uma pesquisa com esse objetivo. Fernando Rodrigues, colunista da Folha, diz que se trata de um “caso perdido”, porque mais de 80% dos brasileiros, segundo o Datafolha, acham que os condenados tinham mesmo que ir para a cadeia. O percentual é o mesmo entre simpatizantes do PT. Chegou-se ao mundo perfeito da mídia: ela julga e condena seus desafetos, fazendo uma campanha violentíssima para criminalizá-los, pressiona os juízes, depois faz pesquisa para perguntar à população se aprova que os réus – que ela passou oito anos satanizando –  sejam presos. Como se a manipulação da opinião pública não fosse aqui o cerne do problema. Como se a lógica da turba fosse mais importante que uma análise equilibrada e sem paixão do processo penal.


Todo o processo do mensalão foi costurado apenas com sensacionalismo. A opinião pública jamais teve a oportunidade de ver  e discutir os autos do processo. Alguém aí ficou sabendo, por exemplo, que um graduado diretor das Organizações Globo, um dos grandes especialistas em Bônus de Volume no mercado publicitário, foi testemunha de defesa de Henrique Pizzolato? Eu mesmo, que estudo o caso Pizzolato há meses, só fiquei sabendo disso dias atrás. Otavio Florisbal declarou, em juízo, que o bônus de volume dado pelos veículos de comunicação à DNA, no caso Visanet, durante o período no qual Pizzolato era diretor de marketing do BB, era regular. A procuradoria menciona uma cláusula do contrato segundo a qual o bônus deveria voltar ao BB, e Pizzolato foi condenado por isso. Florisbal explica, contudo, que essa cláusula aparece em vários contratos com empresas públicas, é sempre contestada junto às autoridades competentes, e a mídia invariavelmente consegue derrubá-la.  E afirma, categoricamente, que este foi o caso do contrato entre Visanet/BB e DNA. Entretanto, esse depoimento jamais veio à luz. Assim como fez Barbosa com vários documentos, a mídia também selecionava apenas aqueles que interessavam à acusação.


A imprensa agora quer fechar o caixão e esquecer o assunto. Só que ela esquece que, dentro desse caixão, ainda há pessoas vivas. Aliás, esse é o maior incômodo para aqueles que lideraram a farsa. Não é por outra razão que Joaquim Barbosa parece tão desesperado para manter Dirceu preso em regime fechado, e obrigou Genoíno a assinar um documento em que ele se compromete a não dar entrevistas. Não é por outra razão que Barbosa, em mais um de seus surtos de medievalismo, disse que à pena prevista se devia acrescentar o “ostracismo”. O que é uma aberração incrível. Há casos inúmeros de presos que publicam livros. Jean Genet, um grande escritor francês, ficou famoso ainda dentro da cadeia. Jornalistas conseguem fazer entrevistas até com presos em Guantanamo. E Barbosa vem falar que a imprensa brasileira não pode publicar entrevistas com os condenados da Ação Penal 470? Por que tanto medo?


Bem, eu sei porque tanto medo. Porque Barbosa, como juiz responsável na fase de investigação do Ministério Público, quando a Ação Penal ainda era o Inquérito 2245, agiu deliberadamente contra o direito de defesa dos réus. E aí está, aliás, a razão pela qual, segundo qualquer tratado internacional de direitos humanos, a mesma autoridade que trabalha na investigação contra um réu, jamais pode ser também o seu juiz. E Barbosa foi juiz investigador, juiz de instrução, juiz relator, juiz presidente e juiz de execução. Nunca se viu isso na história do judiciário brasileiro!


O procurador, em conluio com Joaquim Barbosa, ocultou, deliberadamente, provas que podiam ajudar os réus em suas defesas. A criação do Inquérito 2474 teve dois objetivos: livrar Daniel Dantas de qualquer envolvimento com o valerioduto, apesar do relatório da Polícia Federal mostrando que foram empresas controladas por ele as principais fontes de recurso de Marcos Valério, e esconder as provas que inocentavam Henrique Pizzolato e Gushiken, esvaziando a teoria de que o suposto desvio do Fundo de Incentivo Visanet foi feito por um petista, sob ordens secretas de Dirceu, para comprar deputados.


Observe o quadro abaixo. Ele mostra que a dupla Antonio Fernando e Barbosa escondeu o Laudo 2828, resultado de uma investigação da Polícia Federal feita a pedido deles mesmos. Escondeu-o dos próprios ministros do STF, pois o documento foi anexado à Ação Penal 470 após a aceitação da denúncia. O laudo foi mantido em segredo de Pizzolato e Gushiken por muito tempo, apesar de ser um documento essencial para a defesa de ambos.
 
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O fato é que o procurador-geral da República tinha escrito uma denúncia apressada, sem esperar o resultado de algumas investigações fundamentais da Polícia Federal.
Ele apresenta a denúncia em março de 2006.


Quando essas investigações ficaram prontas, como o Laudo 2828, e uma série de investigações sobre as movimentações financeiras de Marcos Valério (que seriam resumidas depois no relatório-resumo do Inquérito 2474), ao final de 2006, o procurador, ao invés de anexá-las à denúncia, eventualmente corrigindo-a, resolve pô-las dentro de uma gaveta secreta, onde ninguém mais poderia vê-las a não ser ele mesmo e Joaquim Barbosa.


E trechos selecionados seriam vazados à imprensa, como veríamos com a matéria tendenciosa da Época tratada em post anterior.


O Laudo 2828 seria anexado à Ação Penal 470 dois dias depois da publicação do Acordão que aceitava a denúncia da procuradoria e criava a AP 470. Ou seja, um documento fundamental para se entender o processo foi escondido dos ministros e da opinião pública, para que as informações neles contidas não fossem objeto de debate nem no plenário nem na sociedade!


Os outros documentos contidos no Inquérito 2474 são mantidos em sigilo até hoje. Semanas atrás, Lewandowski liberou o 2474 para Henrique Pizzolato, mais uma prova de que a decisão anterior, de mantê-los em segredo, foi um arbítrio ilegal de Joaquim Barbosa.


Só que, ao aceitar essa manobra, Joaquim Barbosa pode ter cometido o mais grave crime cometido por um juiz: cerceou a defesa. Talvez seja essa manobra o que, efetivamente, venha a obrigar o STF, no futuro (distante?), a anular a Ação Penal 470.


O argumento de que os “réus tiveram todos os seus direitos de defesa respeitados” se tornou ridículo. Esses direitos foram vergonhosamente, sistematicamente, violados.
Talvez seja por entender que já descobrimos o que ele fez, que Barbosa esteja tão desequilibrado emocionalmente e falando em “alerta à nação”… Barbosa tenta se blindar invocando novamente todos os demônios do histerismo lacerdista e midiático, que tanto lhe ajudaram ao longo do julgamento.


Antes de encerrar, mais alguns comentários sobre a cobertura da nossa grande imprensa ao mensalão. Seus áulicos vivem tentando justificar sua postura de oposição ao governo federal com o argumento de que a imprensa deve ser crítica. Lembro-me que uma frase de Millor dita no contexto da ditadura começou a ser repetida pela mesma imprensa que foi, durante décadas, chapa-branquíssima: “imprensa é oposição, o resto é secos de molhados”.


Pois bem, se o STF é um poder, o jornalismo também não deveria ser crítico a ele? Aliás, diante da constatação, chancelada inclusive pelo constitucionalista português José Canotilho, de que o STF brasileiro “é o mais poderoso do mundo”, e sendo um poder vitalício, isso não justificaria termos uma posição crítica às suas decisões?


Não seria democrático que nossa grande imprensa, que tanto dinheiro recebeu da ditadura, com um de seus membros inclusive alegando que “errou” ao apoiar o golpe de 64, desse mais voz aos que questionam as condenações da Ação Penal 470?



Blog do Zé Dirceu

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